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Cozinheiras negras no Brasil: uma história a ser reescrita


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“O país nunca prestou atenção nas mulheres negras como contribuintes, como donas da sua história”

(Ana Maria Gonçalves)


Tais de Sant’Anna Machado, em Um pé na cozinha. Um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negra no Brasil1, elege como objetivo “construir uma proposta de genealogia do trabalho culinário feminino e negro no Brasil” (2023, p. 26).2 Busca pois refletir sobre as ações das cozinheiras negras frente as opções restritas que tinham à sua frente, visando explicitar suas ações sociais e políticas. Resultado da tese de doutorado da socióloga, agora transformado em livro.

Machado, não quer construir uma história romantizada da formação da cozinha brasileira e nem transformar sua pesquisa num compêndio de técnicas e receitas culinárias criadas por cozinheiras negras, mas quer enxergar a vida dessas cozinheiras.

Um Preâmbulo e três Interlúdios antecedem os quatro capítulos divididos cada um em duas partes. A primeira parte intitulada “Cozinha não é lugar de gente” e a segunda “A conversa sempre esteve na cozinha”.

Frente à riqueza de informações e reflexões recolheremos neste capítulo ideias que marcam a trajetória de pesquisa da autora, procurando manter a dinâmica presente no texto. Opção, que pedirá um cuidado especial para seguir rastros que a autora entrelaça na reconstrução da vida das cozinheiras negras. Nosso desejo é o de propiciar aos leitores e leitoras uma primeira aproximação do texto, na esperança de que estimulados, desafiados e incomodados pelas reflexões apresentadas busquem o texto original.


A cozinha e a população negra como sinônimos”

Qual o cotidiano de mulheres negras que trabalhavam na cozinha no período colonial?3 A carta de Esperança Garcia para o governador da província do Piauí, em 1770, pedindo que seus direitos fossem respeitados, pode desvelar a percepção do mundo em que elas viviam e as suas estratégias de sobrevivência. Machado toma como ponto de partida a expressão popular brasileira “Um pé na cozinha iluminando-a com a categoria “intimidade monstruosa”, que consiste nos “horrores cotidianos mundanos que não são reconhecidos como horrores” (Sharpe apud Machado, 2023, p. 40). 4

A morte de Cleonice Gonçalves de Covid, em 22 de março de 2022, só confirma ser a cozinha, “uma metáfora para entender o lugar e o papel essencial de mulheres negras na história brasileira e o esforço sistemático de invisibilização de sua importância por parte das elites e de autoridades governamentais” (p. 44).

Uma história do trabalho de mulheres negras, que leve em conta a complexidade de sua agência e estratégias de sobrevivência, está para ser escrita no Brasil. Em geral, a historiografia tradicional dicotômica e redutiva só considera o trabalho feminino a partir do pós-abolição e não considera, ainda, os diferentes papeis essenciais exercidos pelas populações escravizadas.

O trabalho culinário das mulheres negras no período colonial acontecia tanto “portas a dentro” como “portas a fora”. Os registros históricos do trabalho culinário nas grandes cidades coloniais revelam suas condições insalubres e humilhantes. Além disso, as cozinheiras negras estavam sujeitas a outra violência, a sexual, exercida à luz do direito senhorial.

O desprezo pelo trabalho manual não só reforçava o estigma do trabalho na cozinha, como contribuiu na construção de uma feminilidade branca e no culto à domesticidade no Brasil. Na sociedade patriarcal escravista a feminilidade das mulheres brancas e o estilo de vida de suas famílias se dava graças ao trabalho executado por mulheres negras, majoritariamente. Na verdade, “o trabalho na cozinha doméstica dava continuidade às condições desumanas do trabalho escravizado” (p. 68).

Sem negar a importância desses relatos históricos apresentados, faz-se necessário ter em conta que são fruto de olhares externos que não tem presente a agência das cozinheiras e sua resistência. “Mesmo em condições impraticáveis, cozinheiras negras domésticas tentavam viver nas brechas que encontravam” (p. 71).

No período colonial, o trabalho “portas a fora” revestia-se de importância para as famílias, como fonte de renda, para a cidade, como fonte de abastecimento e para as escravizadas que acumulavam pecúlio, teciam redes de solidariedade e criavam espaços de territorialidade nas ruas. Uma preocupação constante dos códigos de postura era controlar as atividades de quitandeiras, ganhadeiras e vendedoras ambulantes. Com pouco sucesso é verdade. As condições precárias do trabalho dessas mulheres contrasta com as pinturas de Jean-Baptiste Debret, que as retrata como “anjos comerciantes” e de semblantes sereno. Imagem que esconde a rotina bruta de trabalhos dessas mulheres, as precárias condições de circulação, as dificuldades para obter licença para vender seus produtos, o cuidado na compra de mercadoria e o constante controle das autoridades.

As quitandeiras e ganhadeiras mesmo vivendo em condições de vida precária ao se integrarem com diferentes grupos se ubicavam no mundo em que viviam e encontravam brechas possíveis para viabilizar melhores condições de vida. “Tentando sobreviver ao cotidiano de uma intimidade monstruosa no contexto da escravidão, foram capazes de construir e preservar uma autodefinição que ia de encontro ao tratamento desumano! (p. 97).


A permanência contemporânea das violências no cotidiano de mulheres negras na cozinha

Para Abdias Nascimento, o período pós-abolição e o início da República foi de genocídio econômico e social para a população negra no campo do trabalho. Nesse período e ao longo do século 20, as mulheres negras mantiveram sua presença na cozinha vendo emergir a figura do chef de cuisine, signo da modernidade europeia .

A análise do obituário de Elisa Inês da Silva, cozinheira durante anos na Escola Marechal Mallet, em Campinas, é reveladora de uma política de memória sobre mulheres negras, que naturalizava uma história de violência e exploração econômica.

Novas políticas racializadas de gênero e de classe são implantadas no pós-abolição e no século 20 (Wlamira Albuquerque5) para requalificar a desumanização e a subordinação das trabalhadoras negras. O ideal da brancura passa a definir a escolha da trabalhadora/trabalhador, que necessita ter “boa aparência”, o que implica na exclusão da negritude e feminilidade de trabalhadoras qualificadas.

No pós-abolição, o controle do trabalho na rua aumentou, restringindo a atividade das mulheres negras, que acabavam tendo como opção o trabalho doméstico, agora sujeito a fiscalização. A vida de cozinheiras como Dona Risoleta, Carolina de Jesus e Maria de São Pedro revela detalhes da “intimidade monstruosa” do trabalho doméstico no período: trabalhar sem remuneração e jornadas exaustivas.

Parte da literatura memorialista, pré-modernista e modernista do início do século contribuiu com a construção de uma política de modernização baseada no ideário fantasioso de harmonia racial. “A exaltação das tradições de um passado colonial escravista, de maneira a mostrar como as três raças contribuíram de maneira harmônica para a formação de uma identidade nacional, passa por criar um papel para as populações não brancas”(p.126).

As obras de Monteiro Lobato e Gilberto Freyre confirmam essa opção político-social. “Os dois autores estão empenhados “em construir uma identidade nacional em que a construção do estereótipo da mãe preta é central” (p.131). Imagem que contribuiu na criação de uma visão benevolente da escravidão no Brasil, não contribuindo em nada para melhorar as condições de vida das cozinheiras negras.

Enquanto cozinheiras negras eram aprisionadas ao seu passado escravista, um outro processo histórico acontecia no campo da cozinha profissional, com base no branqueamento e na modernização do país.


A gastronomia e seu valor essencial: a brancura

No início do século 20, a sociedade brasileira passava por profundas modificações com a atravessamentos de raça, gênero e classe. Hierarquias racializadas passaram a determinar o lugar ocupado por mulheres negras na sociedade. Esse período viu surgir um novo campo de trabalho culinário para cozinheiras (os) no âmbito da hospitalidade pública. No entanto, esses novos estabelecimentos exigiam novos profissionais. A compreensão desse novo campo de trabalho culinário passa por um recuo histórico, pois:

A análise desses registros permite observar como, no início do séculos 19, uma mão de obra masculina e europeia já se oferecia para trabalhos de prestígio em determinadas cozinhas de uma sociedade escravista: hotéis, cafés, pensões e restaurantes, além de casas de famílias abastadas e oferecendo seus serviços culinários para ocasiões especiais (como “fazer jantares”) (Machado,2022. p. 148).

No processo de profissionalização do trabalho culinário europeu ocorreu uma masculinização e embranquecimento, mesmo antes da formação da gastronomia. Esta surgirá mais tarde após a revolução francesa, com a difusão e expansão da alta cozinha e com a aplicação de pensamento científico à cultura alimentar. Entre os chefs que marcaram o desenvolvimento da gastronomia temos Marie Antoine Carême (1784-1833) e Georges Auguste Escoffier (1846-1935), ambos franceses. Gradualmente, a gastronomia se distanciou da cozinha doméstica, garantindo uma identidade de gênero diferente para o trabalho gastronômico.

No século 19, ocorreu a mundialização e consolidação da cozinha francesa, como sinônimo de alta cozinha. Para Machado, “a mundialização da gastronomia como o campo por excelência de um trabalho culinário profissional se ampara em um léxico de gênero e de classe que, por sua origem, também tem contornos racializados” (p. 158).

Muitas são as consequências desse processo: patologização da comida feita por cozinheiras negras como a negação de suas subjetividades e racionalidade.

A marca d’água na popularização da gastronomia brasileira: neocolonialismo

“A segunda metade do século 20 foi marcada pela consolidação da gastronomia como o campo legitimo do conhecimento culinário no Brasil - e os chefes como sua autoridade máxima” (p. 170). As mulheres negras continuaram tendo dificuldades para assumir posições de chefia ou destaque seja pelo fato da política de reconhecimento valorizar a brancura e a masculinidade, como pelos vínculos da gastronomia com a cozinha de elite.

Alguns períodos marcam a história da gastronomia no exterior e no Brasil: na década de 1960 tem-se a hegemonia da cozinha francesa, hegemonia questionada pela Nouvelle Cuisine e pelo processo de destradicionalização na própria França; na década de 1970 chegada de chefes franceses no Brasil e multiplicação de escolas de gastronomia no pais; popularização da gastronomia no final do século 20.

“As transformações observadas no início do século 21 poderiam resultar em um acesso mais amplo de mulheres negras à carreira de chefia na gastronomia” (p.180). Na verdade, o que ocorreu foi “uma exclusão que pretende se esconder a partir de uma ideia genérica de popularização do oficio ou de um discurso de defesa de uma gastronomia brasileira” (p. 180).

A análise da trajetória de chefs brasileiros, que destacaram no início do século 21, confirma a atualização do léxico racializado. Os processos de formação de um chef requer altos investimentos, além disso, o que é definido como cozinha brasileira, “não passa por um reconhecimento da longa história de trabalho de cozinheiras negras como autoridade no campo” (p.183). Chefs, como Alex Atala e o belga Quentin Geenen de Saint Maur, se apresentam como descobridores e tradutores do que seria a gastronomia brasileira.

Nesse processo, ocorre a “invisibilização de grupos que detêm originalmente o conhecimento dos ingredientes e das técnicas, como povos e comunidades tradicionais e a população negra” (p.187). No Brasil, a gastronomia permanece reconhecendo o valor da brancura, da masculinidade e da valorização dos hábitos alimentares da elite, chefs negras sofrem constantes boicotes. As entrevistas de Benê Ricardo e Anna são reveladoras do rosário de situações vividas pelas chefs negras: boicote, roubo de técnicas e receitas desenvolvidas por elas, baixa remuneração, invisibilização e não reconhecimento da competência.

O valor do serviço da cozinha profissional permanece ainda ligado umbilicalmente ao trabalho de mulheres negras, mesmo com a presença de profissionais brancos. As entrevistas revelam que o discurso meritocrático não é suficiente “para romper com uma estrutura profissional que tem em sua base o racismo antinegritude, o sexismo e o classismo” (p. 213).

Entende-se, então, a rejeição tão comum nas famílias negras de classe média, ao tomarem conhecimento da opção das filhas pelo trabalho profissional culinário. É significativo ser a mãe “uma figura recorrente da materialização desse desconforto, o que mostra seu conhecimento íntimo das condições de execução do trabalho culinário – seja por experiência própria ou pela vivência de mães e avós” (p. 217).

A descriminalização e a violência racial se fazem presentes nas dificuldades que as profissionais tem para serem identificadas como chefs. Em muitas ocasiões são tratadas como indiferença, desrespeitadas ou então confinadas em determinado repertório: cozinha africana, cozinha afro-brasileira ou pratos tipos da cozinha doméstica. Essas situações revelam uma política de controle que veem sempre as chefs negras como se estivessem “fora do lugar”, além de revelar os critérios para que um profissional seja identificado com chef no Brasil.

A sociedade brasileira exige das chefs negras uma etiqueta racial profissional que atenda a imagem criada por folcloristas e literatos brancos, que naturaliza a expropriação econômica e exclusão social. Para iluminar a agencia das mulheres negras, frente a etiqueta racial profissional, a autora recorre ao conceito de “cultura da dissimulação” criado por Darlene Clark Hines: “por dissimulação, o que quero dizer é que o comportamento e as atitudes das mulheres negras criaram a aparência de abertura e de revelação, mas, na verdade, protegeram de seus opressores a verdade de seus egos e vidas interiores” (Hine apud Machado, p. 234).6

As estratégias para lidar com a exigência de etiqueta profissional variava em razão das condições de cada chef. Outra atitude frente à etiqueta racial profissional é a de manipular a imagem de controle da mãe preta em causa própria, porque:

A partir das vozes e das trajetórias das chefs e cozinheiras profissionais de destaque, observamos as diferentes maneiras de como elas buscam construir um espaço de autodefinição dentro da cozinha a partir de um lugar de autoridade que não lhes é concedido, mas que ousam tomar para si (MACHADO, 2022.p. 241).


Cozinha, um “espaço insurgente7

O ponto de partida da autora para discutir a agência das cozinheiras negras é a foto de uma vendedora de cocada, tirada por Pierre Verger, em 1947, na festa do Senhor do Bonfim. Imagem que confirma o que as entrevistas, os registros biográficos já sinalizavam: “mulheres negras têm de agir de maneira minuciosa e oculta para garantir sua sobrevivência e, eventualmente, conquistar melhores condições de vida” (p.250). Constatação que desafia pensar a agência e resistência dessas mulheres negras a partir da vida cotidiana.

A análise de suas trajetórias possibilita, pois, “observar as diferentes maneiras pelas quais cozinheiras negras buscam brechas em um sistema que funciona com base na precariedade e na descartabilidade de suas vidas” (p. 252). Observação reveladora de uma transformação: a cozinha deixa de ser um espaço de confinamento para tornar-se uma territorialidade feminina e negra e o cozinhar uma ferramenta de ação social e política.

Machado elege quatro tópicos para nuançar a compreensão da agência e resistência das cozinheiras negras. A autodefinição é o primeiro ponto a ser considerado na análise da agência “a construção de uma definição de si que contraria estereótipos, recusa papeis de sobrevivência estabelecidos e reivindica humanidade” (p.254).

A leitura cuidadosa dos registros, excertos biográficos de cozinheiras negras, tanto do período da abolição, como do pós-abolição e da modernidade, aponta para a construção de uma autodefinição frente as condições exaustivas de trabalho, para afirmação de si, de sua feminilidade e humanidade e para a percepção crítica de seu trabalho para o funcionamento da sociedade. Estas constatações revelam que as cozinheiras negras “tem uma vida e uma subjetividade que não pertencem ao trabalho” (p. 260).

Constatação reveladora de uma transformação da cozinha, que deixa de ser um espaço de confinamento para tornar-se um território feminino e negro, para tornar-se uma ferramenta de ação social e política. Outro ponto importante presente no processo de autodefinição entre as mulheres negras é a religião, tanto de matriz afro-brasileira quanto cristãs. “Esse pertencimento a comunidades religiosas majoritariamente negras ou ligadas à valorização de uma negritude e de matrizes africanas se mostrou fundamental em registros históricos e na trajetória de algumas entrevistadas” (p. 262). As relações das mulheres negras com a religião cristã foram muitas vezes marcadas, também, pelo racismo de muitos membros da Igreja.

Um segundo tópico, que pesa nas formulações de autodefinição, é o da relação com o próprio trabalho culinário. O cozinhar era motivo de orgulho entre as cozinheiras negras, ao dar a elas possibilidade de assumir funções mais especializadas, trabalhar de maneira autônoma ou ganhar status. As cozinheiras negras na sua sabedoria preservaram e desenvolveram tecnologias alimentares e culinárias de sobrevivência.

O terceiro tópico é o que envolve “segredos públicos”. Cozinheiras negras e chefs submetidas a etiqueta social desenvolveram estratégias silenciosas ou disfarçadas de agência e resistência, que permitiam a partilha de “segredos públicos”, que aparentemente não rompiam o silêncio, mas, na verdade possibilitavam a comunicação dentre elas e com a comunidade negra.

A cozinha tornou-se ao longo do tempo um espaço polivalente, espaço de partilha e articulação, “mas, em especial, um lugar invisibilizado de trabalho de mulheres negras de pele escura”(p. 282). Essa invisibilização de mulheres negras de pele escura revela a “pigmentocracia” presente na sociedade brasileira, um dos efeitos perversos do processo de embranquecimento.

Na atualidade, algumas chefs negras tem articulado um trabalho coletivo para o reconhecimento e a valorização do trabalho de mulheres negras. Machado, por fim, escolhe o cuidado para

pensar as formas de agência e de resistência de cozinheiras negras a partir dos modos como se dedicaram às suas famílias e à comunidade negra em geral e como, a partir dessa dedicação e dos frutos de seu trabalho, sonharam com um futuro menos desigual e violento para as próximas gerações (MACHADO,2022,, p. 287).

No século 19, as quitandeiras e as tias baianas do Rio de Janeiro encontravam-se envolvidas na construção de territorialidades negras. No século 20, registros históricos de São Paulo nos mostram mulheres negras envolvidas em diversas atividades do movimento negro.

Digno de nota, o cuidado familiar das cozinheiras negras para assegurar educação formal, para garantir o sustento físico da família, como também de forma imaginativa e sofisticada metamorfosear a dura realidade cotidiana de seus filhos e filhas. “Esse cuidado, que é coagido e dado gratuitamente, é o coração negro de nossa poética social, do fazer e da relação” (p. 304).


Considerações finais

Um pé na cozinha de Taís Araújo Machado acompanha a trajetória de vida de cozinheiras negras do século 18 à atualidade, das domésticas às profissionais da gastronomia. Esta genealogia das condições de trabalhos das mulheres negras na cozinha até a primeira metade do século 20 possibilita compreender a sociedade brasileira, ou melhor, compreender a importância das mulheres negras na constituição da nação brasileira.

O livro desvela a colonialidade do passado e do presente incrustada nas estruturas coloniais de poder e hierarquização racial, presentes no âmbito da cozinha. Num movimento crítico, que se amplia no decorrer do texto, a autora aponta para diversas formas de violência que aconteceram e acontecem no espaço da cozinha. Desvelando a intimidade monstruosa” do trabalho culinário.Um vasto material empírico dá suporte para a desconstrução do espaço da cozinha como harmônico, revelando sua face violenta, misógina e racista.

Para a autora, as cozinheiras negras acabaram transformando o espaço da cozinha em “espaços insurgentes”, pois, nele as mulheres negras na sua sabedoria não só dominaram as técnicas culinárias, como com criatividade constituíram e mantiveram laços familiares e comunitários necessários para a própria sobrevivência de seus filhos e filhas. Se hoje as chefs negras podem:

escolher a cozinha como espaço trabalho só é possível graças ao trabalho de uma longa tradição de cozinheiras negras, cuja resistência e ação política radical foram continuamente ignoradas - mas tornaram possível o futuro de um povo que jamais deveria ter sobrevivido” (MACHADO, 2022, p. 242).

O trabalho culinário doméstico e profissional dessas mulheres negras revela a agência e a resistência das mesmas, rompendo com o processo histórico que as naturalizavam e estereotipavam como “mãe preta”.8 Cozinheiras negras enquanto grupo questionaram as estruturas sociais de gênero e de classe tão presentes na sociedade brasileira. Isto acontece, quando elas se tornam agentes das próprias histórias.

No prefácio, Lourence Alves sintetiza bem a atmosfera do livro:

Trata-se de uma investigação que se debruça sobre registros e rastros historiográficos diversos, imagéticos, textuais e orais de cozinheiras e chefs negras, garimpadas de diferentes temporalidades. É uma análise sócio-histórica do trabalho culinário que se baseia nas contribuições do campo da epistemologia feminina negra, da historiografia, e que tem como foco a agência de mulheres negras e estudos críticos e interseccionais sobre alimentação (MACHADO,2022 , p. 19).

Um pé na cozinha, nos ajuda a ver- no sentido grego de conhecer-, o que durante muito tempo foi silenciado, ao negar dignidade humana a maior parte de nossa gente. Esperamos, que a riqueza de informações deste livro, contribua com uma tomada de consciência da complexidade e dos paradoxos que marcaram e marcam a vida da imensa população negra deste pais. Uma ótima leitura.


Bibliografia

ALBUQUERQUE, Wlamira. R. de. O jogo da dissimulação. A abolição e a cidadania no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

HINE, Darlene Clark. Race and the inner Lives of Black Women in the Middle West.” Signs, v,14, n.4,1989.

MACHADO, Tais de Sant’Anna. Um pé na cozinha. Um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil. São Paulo: Fósforo, 2022.

MIKO, Yuko. Política antiescravista na fronteira: São Mateus, Espírito Santo (1884). In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). As revoltas escravas no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

SHARPE, Christina. Monstrous Intimacies: Making Post-Slevary Subjects .Durham, NC: Duke University Press, 2010.SILVA. Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem nega fulô. Histórias d trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador (1970-1910). Jundiaí: Paco Editorial. 2016.DAS, Veena. Vida e Palavras. A violência e sua descida no ordinário. São Paulo: Editora



1 MACHADO. Tais de Sant’Anna. Um pé na cozinha. Um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negra no Brasil. São Paulo: Fósforo, 2022, ISBN 978-85-84568-43-3. pp.397.

2 Passaremos a indicar apenas a página do texto.

3 Para uma compreensão densa do conceito de cotidiano, ver DAS Veena. Vida e Palavras. A violência e sua descida no ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020, p.21-31.

4 SHARPE, Christina. Monstrous intimacies: Making Post-Slevary Subjects. Durham, NC: Duke University Press, 2010.

5 ALBUQUERQUE, Wlamira. R. O jogo da dissimulação. A abolição e a cidadania no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

6 HINE, Darlene Clark. Race and the inner Lives of Black Women in the Middle West. Signs m v 14, n.4, 1989, pp.912-20.

7 Expressão inspirada na categoria criada pela historiadora Yuko Miko, “geografia insurgente”. ‘Geografia insurgente, que possibilitava aos quilombolas expressar suas reivindicações de cidadania.

8 Ver de SILVA, Maciel Henrique..Nem mãe preta, nem nega fulô. Histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador (1970-1910). Jundiaí: Paco Editorial. 2016.

 
 
 

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