Luiz Gama: do silenciamento ao panteão da História do Brasil
- Ênio Brito
- 8 de jul.
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Atualizado: 8 de jul.

· Ênio José da Costa Brito
"Nós nem cremos que escravos outrora
tenha havido em tão nobre País..."
(Hino da Proclamação da República)
“Não foi sem dor que Luiz Gama profetizou. ‘Tem uma escola: a senzala. Tem um descanso; o eito, tem um consolo: a vergasta. Tem um futuro: O túmulo’ ” (p.557)
Bruno Rodrigues de Lima inicia o livro, Luiz Gama contra o Império. A luta pelo direito no Brasil da escravidão, fruto de sua tese de doutorado na Faculdade de Direito da Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main, “definindo o quadro teórico e metodológico para a análise do problema e, na sequência, estabelecendo o conjunto de fontes primárias para o seu estudo” ( 2023, p.42)[1].
Em geral, se estuda Luiz Gama sob uma perspectiva histórica, que prioriza a política e o romance. Estudos, que enfrentam dois problemas: a falta de documentação e o risco da ficcionalização. A opção do autor é por uma pesquisa da história do direito para interpretar a vida e obra do jurista Luiz Gama. Consciente de que “muitas nuances de comportamento social passam despercebidas nos documentos simplesmente porque aqueles que os leem continuam a não estar familiarizados com disposições básicas do direito” (p.46). Seu ponto de partida é a história do direito visando “responder como Gama via o mundo e, com os olhos em sua prática local, como ele o refletia e como ele agia nesse mundo” (p.47).
Elege as seguintes categorias jurídicas: “conhecimento normativo, multinormatividade, literatura normativo-pragmática e produção normativa de liberdade-,articuladas para investigar como Luiz Gama produziu conhecimento normativo de liberdade em uma sociedade escravista do século XIX”(p.47).
Frente a proposta do autor, nossa intenção é revisitar os capítulos recolhendo alguns tópicos, sem dar conta de toda a riqueza dos mesmos, visando apenas dar uma ideia das inúmeras veredas trilhadas por ele, nesse trabalho artesanal, minucioso, com lastro documental gigantesco.
Luiz Gama contra o Império está estruturado em cinco longos capítulos intitulados No labirinto das nações: Luiz Gama e a invenção da liberdade na era do contrabando; Soldado, amanuense e poeta; primeiro homem de armas depois homem de letras; A imprensa como jurisdição: da crônica forense a literatura normativa pragmática; O advogado da liberdade e Racializar o conceito para radicalizar a luta pelo direito. Lima ao traçar a biografia jurídica de Luiz Gama olha para sua vida como “uma vida para o direito” (p.50).
Invenção da liberdade
Recorrendo ao Mito de Teseu e o labirinto, Lima estabelece uma correlação que vê o Brasil como um “labirinto” e a escravidão como o “minotauro”. O herói ou os heróis eram os que enfrentavam o monstro ou tombavam pelo caminho na luta pela “invenção da liberdade” numa sociedade escravista. Em suas múltiplas e incontáveis táticas e estratégias de sobrevivência, os escravizados e escravizadas abriram espaço para a “invenção da liberdade”. Em 1831, longe de abolir o tráfico, o Império do Brasil o intensificou, introduzindo mais ou menos 738 mil africanos e facilitando sua posse legal. “A partir de 1835, sobretudo até a lei que pôs fim ao tráfico em 1850, a política do contrabando negreiro dominou a agenda do Estado e da sociedade civil no Brasil” (p.62).[2]
Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu, em 21 de junho de 1830, em Salvador, seu pai um fidalgo de família portuguesa e sua mãe uma negra africana da Costa da Mina. Nesta época, a cidade já tinha perdido seu prestígio econômico e político e viveria dois levantes, o dos Malês, em 1835 e a Sabinada, em 1827.[3]
Na sua autobiografia, Gama faz menção ao desaparecimento da mãe, “depois da revolução do dr. Sabino, veio ela para o Rio de Janeiro e nunca mais voltou” (p.71). Muito provavelmente, ela já havia participado do Levante dos Malês, em 1835. Pois, todos os seus qualificativos a posicionavam, “como ativista política com notável autonomia e singular raio de ação” (p.74). Gama viveu sob os cuidados do pai entre março de 1838 a novembro de 1840, quando foi vendido por ele. Gama chegou no cais do Valongo do Rio de Janeiro, na tarde do sábado de 21 de novembro de 1840, já no domingo se encontrava na casa de Viera, negociante contrabandista, “que recebia escravos da Bahia à comissão” (p.80).[4]
Na cidade imperava um pulverizado e dinâmico mercado creditício privado não institucional. Gama é vendido por Vieira, em dezembro de 1840, para o contrabandista Antônio Pereira Cardozo, que o levou para São Paulo com outros escravizados e escravizadas. Cardozo tentou vende-lo nas praça de São Paulo, Jundiaí e Campinas, sem sucesso, devido ao fato do menino ser baiano.
A escravidão deu início a um intenso negócio jurídico da cadeia de haveres e deveres, gerando penhores, notas, promissórias, hipotecas, etc. No caso de Gama, “um bolo de papéis foi produzido para conferir legalidade àquele que nunca poderia ter sido propriedade escrava”(p.86).
“Diferentemente da Roma negra que era a portuária e febril Salvador, São Paulo tinha uma comunidade negra escravizada, livre ou liberta consideravelmente menor, o que estreitava avenidas de liberdade como alforrias, ações de liberdade, coarctações, fundos comunitários informais de emancipação, ou mesmo canais institucionais de reclamação de direitos” (p.88). A cidade negra de São Paulo tinha uma vida dinâmica e estava longe de ser o bucólico e pacato burgo de estudantes da Faculdade de Direito.
Gama, na senzala do contrabandista Cardozo, aprendeu o oficio de sapateiro. Fato relembrado pelo alemão Adolfo Sidow numa polêmica com Gama, em 1877. Polemica que comprova a narrativa autobiográfica em dois de seus pontos sensíveis: “a separação perpétua da família e o exercício do oficio de sapateiro” (p.91). Oficio este aperfeiçoado com mestre Marcelino Pinto do Rego, preto sapateiro, católico, participante de várias irmandades atuantes na cidade. De dezembro de 1840 até 1848, “Gama foi, em síntese um menino preto entre homens pretos do Rosário” (p.100).
Sua fuga ocorreu em 1848, aos dezoito anos de idade, após “ter obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas” de sua liberdade (p.100). A pedra angular do plano de fuga foi o letramento básico. Gama foi alfabetizado pelo estudante de direito Antonio Rodrigues do Prado Junior.
O Brasil sendo uma sociedade escravista de soberania plena, nela os recursos de demanda de liberdade eram revisados “por uma corte de apelação vinculada e via de regra cumpridora, disciplinada da política de escravidão” (p.104). Entende-se, então, que a excepcionalidade da escravidão no Brasil repousava no fato jurídico de ser ela instituída na cúpula do estado Nacional.
Os escravizados e escravizadas brasileiras não tinham na fuga um horizonte estável de liberdade. “é por isso que, além do letramento básico e das provas inconcussas, Gama levava consigo na sua fuga mais dois ingredientes: ‘vontade inabalável de instruir-se’ e o ânimo de quem havia ‘ jurado implacável ódio aos senhores” ( p.106).
Em dezembro de 1869, Gama se recorda “publicamente como e quando entrou no gabinete do célebre conselheiro Furtado de Mendonça, renomada autoridade policial, judiciária e acadêmica” (p.109). O que levou Gama a solicitar a entrada no mundo burocrático da administração policial de São Paulo? Entre os indícios pode-se numerar “a época de entrada no gabinete, isto é, no mundo burocrático imperial ( aproximadamente em 1849); as razões morais intimas que o levaram a tomar essa decisão (desejo de instrução primária e ódio pelos senhores de escravos) e o passado como escravizado, que chegou a insuportáveis oito anos de cativeiro “ ( p.110). O próprio Furtado de Mendonça relembra que esse encontro se deu em 1847, período no qual Gama estava no cativeiro. Portanto, “ambos se tornaram amigos na mais improvável das circunstâncias, quando um era escravizado e o outro a maior autoridade policial da província” (p.110).
Muito provavelmente, Furtado de Mendonça prestou algum auxílio ao jovem Gama depois da fuga. Ele tinha “competência normativa para validar os papéis de liberdade de um ex-escravo e nomeá-lo oficialmente como soldado raso liberto” (p.111). Ele foi o fiador da liberdade de Gama, seu padrinho.
Deixar de ser escravizado levava um tempo, e não significava a superação do estigma da escravidão. “em regimes jurídicos racializados, a variável da raça jogava um peso que simplesmente poderia enxovalhar qualquer prova de liberdade” (p.113).
Às vésperas do fim da era do contrabando, as veredas que levavam à liberdade estavam bloqueadas aos escravizados e escravizadas; “ao fugir, Gama sabia que precisaria inventar sua liberdade da maneira mais segura e estável possível” (p.114) Apostou no apadrinhamento.
Vários papéis sociais
Gama como soldado municipal às ordens da delegacia e amanuense presenciou centenas de interrogatórios, que apuravam se os escravizados e escravizadas eram africanos livres. “Como amanuense da secretaria de polícia, Gama registrou uma a uma as 123 cartas de emancipação dos africanos livres residentes na província de São Paulo. Anotando nome, naturalidade, escarificações étnicas, residência e designação de ocupação“ ( p.139).
As atividades de copista e de escrevente realizou no escritório do escrivão Coelho Neto e acompanhou os interrogatórios e as diligência na delegacia da polícia que tinha a frente Furtado de Mendonça. Em 1848, seu pertencimento racial e seu estatuto jurídico não impediram seu recrutamento. No entanto, após a reforma de 1850 da Guarda Nacional, “os batalhões, companhias e legiões militares reforçariam critérios de segregação racial em suas fileiras” (p.142).
Gama esteve preso 39 dias, de 1º de julho a 9 de agosto de 1854, por insubordinação. Acabou sendo expulso do exército. Em 21 de novembro de 1834, Gama é engajado para auxiliar os trabalhos da secretaria numa delegacia de polícia. Nela permaneceu por quine anos, ampliando seu conhecimento normativo não só sobre o estatuto jurídico dos africanos livres, mas também, sobre muitíssimos outros assuntos da multinormatividade administrativa.
Como copista, ele tinha acesso a dois arquivos locais, o notorial e o policial. Ao ampliar sua “memória normativa” se habilitava para assumir a função de escrivão e amanuense, enfim ascender na burocracia. “Como copista, Gama expandiu em muito o seu raio de ação dentro do repertório de possibilidades franqueadas a um escrivão” (p.163).
Em 28 de maio de 1857 é nomeado e empossado como amanuense da secretaria da polícia da província de São Paulo. Como amanuense, Gama diligenciaria atos normativos sobre todo o tipo de demanda administrativa e litígios judiciais. No seu trabalho de amanuense, “Luiz Gama trafega por diferentes jurisdições, locais e nacional; discrimina competências e funções legais; qualifica os estatutos jurídicos das vítimas com acurácia, como se vê na transição de ‘escravo africano’ para ‘livres’; e articula apropriadamente verbos normativos, a exemplo de apreender, declarar, participar e ordenar”( p.169).
Em 1859, “Luiz Gama lançou seu primeiro e único livro de poesias “ (p.171), com o pseudônimo de Getulino. Primeiras trovas burlescas foi um sucesso. O autor apresentava-se como um profundo conhecedor da sociedade, crítico e erudito.
“Numa época em que não se conhecia um único autor que reivindicasse a negritude e a africanidade como pertença e ancestralidade, a afirmação orgulhosa de sua cor negra, a par da invocação da ascendência africana e da beleza da mulher negra, certamente escandalizou a sociedade letrada branca de São Paulo“(p.172).Com sátira mordaz não poupou os poderosos, o racismo, bacharéis medíocres, escravidão, faculdades de direito, juízes corruptos e estudantes de direito. Gama nos seus poemas deixa transparecer uma visão crítica da Faculdade de Direito de São Paulo. Teria ele estudado lá? Ele considerava o Largo de São Francisco uma “arca de Noé em ponto pequeno, ou seja, uma reunião de pequenas e diferentes porções do Império em um espaço único” (p.185). Sinalizando, assim, a diversidade regional dos alunos da Faculdade de Direito. (Lígia Ferreira).
Num depoimento, Rui Pompeia – amigo de Gama-, afirma que no princípio de sua carreira procurou cursar a faculdade jurídica, mas acabou sendo boicotado pelos estudantes. É essa mocidade acadêmica que desfila nas páginas das trovas burlescas. Mesmo não tendo estudado na Faculdade de Direito de São Paulo, Gama conhecia a “arca” por dentro. Entre 1848 e 1849, Furtado de Mendonça, professor, delegado de polícia, catedrático administrativo e bibliotecário da Faculdade de Direito, estava às voltas com o grande projeto literário de sua vida, a edição da grandiosa obra Repertório de leis do Império. Ele “deve ter encontrado no raríssimo copista negro que demonstrava sede irrefreável de saber jurídico um assistente de imensa valia” (p.191). A sede dessa empreitada intelectual era a Biblioteca da Faculdade.
Getulino mostrou nos seus poemas uma erudição incomum, presente nas referências literárias e nas citações de poetas canônicos da literatura. Em 28 de maio de 1861, ao agradecer a publicação da 2º edição do seu livro, Gama menciona Furtado de Mendonça, o poeta José Bonifácio e Guilherme Delius. Este último era proprietário da Revista Comercial, médico alemão que veio para o Brasil em 1840. A “Revista Comercial combinaria ideias anticlericais e antiescravistas e um indisfarçado desdém pelo Imperador Pedro II” (p.196). Publicação independente, distante da política da escravidão. Numa de suas edições elogiou as Primeiras trovas burlescas. A convite de Delius, Gama iniciou sua carreira como articulista escrevendo uma coluna quinzenal na Revista Comercial, com o pseudônimo de Bandarra. “Foi pela assinatura de Bandarra, pois, que Luiz Gama começou a falar de direito, de política e literatura para o grande público” (p.209). Foi demitido, em 1865, quando a Revista foi vendida.
No final do quadriênio de 1862-1865, Bandarra deixa de ser colunista passando a editor e proprietário da revista humorista ilustrada Diabo Coxo, com a cartunista Ângelo Agostini. Contribuiu para o sucesso a inovação midiática e o tempo político propicio, período da guerra contra o Paraguai (1864-1870).[5] Diabo Coxo criticou a onda patriótica levantada no país. “Ao invés do ufanismo visível, o Diabo tocaria (e tiraria a mão) em negócios ocultos que fundeavam a operação militar” (p.217).
No final de 1865, Gama e Agostini retiraram estrategicamente o Diabo do ar. Nove anos depois “Diabo ressurgiria atentando pelo nome de Cabrião”(p.220). Os autores estavam mais maduros, sem desistir “da missão literária de virar São Paulo de ponta-cabeça através do exercício diligente do ‘ridendo castigat mores” (p.221). Lançado no final de setembro de 1866, já no começo de janeiro foi denunciado à polícia por crime contra os bons costumes. Motivo, uma caricatura do cemitério da Consolação.“Contando as 51 edições do Cabrião, a guerra foi retratada, entre desenhos, mapas e artigos, mais de sessenta vezes “( p.226). Cabrião faz uma crítica feroz ao recrutamento, revelando os seus aspectos fundante: as reações escravistas.
Crônicas Forenses
A ‘Fala do Trono’, de 22 de março de 1867, suscitou forte reação de José de Alencar, que nas Novas Cartas Politicas de Erasmo fez uma defesa incondicional da escravidão, apresentando-a como necessária para o progresso do país.[6]
O primeiro jornal republicano, socialista e abolicionista Democracia veio à luz, em 1º de dezembro de 1867. O jornal teve vida curta, mas nesse período foi a voz dos liberais-radicais paulistas, liderados por Luiz Gama. De perfil criativo e eclético tecia “ comentários constitucionais de projetos de lei e da crônica forense de julgados de tribunais superiores”( p.238).
Gama, nas crônicas forenses, “apresenta ao leitor um conjunto de ‘fatos abusivos [que] abundam em todo o foro brasileiro’” (p.238), visando conscientizar os leitores com relação aos desleixos e delitos da magistratura brasileira. “O redator-chefe da Democracia investia contra os juízes que faziam dos ‘Tribunais de Justiça do Brasil’ (...) os mais perigosos focos de imoralidade e corrupção’ ” (p 242-243).
Na pungente crônica A justiça no liberalíssimo Império de Santa Cruz, Gama acusava o juiz de praticar um “lento e vergonhoso assassinato jurídico” (p.245). Nos diversos jornais por ele fundado- Diabo Coxo (1864-1865), Cabrião (1866-1867), Democracia (1867-1868) Gama teve sempre companhias importantes. Em 1869, lançou um novo projeto editorial, o Radical Paulistano, que contou também, com estudantes de direito, do Largo São Francisco, entre eles Rui Barbosa.
Os artigos assinados por Gama, na primeira página, tratavam de matéria jurídica. “Estava em curso a criação de um novo tipo de discurso: uma literatura normativo-pragmática de liberdade em tempos de escravidão” (p.251). Ilustra bem esse projeto, as análises dos “notáveis abusos contra a liberdade de comércio e o direito de propriedade” (p.255). O esquema interpretativo de crônica forense de Luiz Gama fundamentava-se no exame meticuloso dos limites de jurisdição, articulado com as atribuições e encargos dos agentes e instituições.
Literatura normativo-pragmática
Gama, ao denunciar juízes municipais e de direito da cidade de São Paulo, utilizava a seguinte estratégia. “tem a mofina, a exposição do erro jurídico do titular do juízo e, ato contínuo, a defesa de uma resposta normativa amparada na doutrina que outorgue o melhor direito” ( p.263).
Ele evoca a figura da luta de Davi e Golias para indicar “a dificílima tarefa, sobretudo árdua” (p.265), que irá assumir como projeto de vida, evoca também, a solidariedade racial e social com seus “irmãos de infortúnio”. Seu incessante combate contra a escravidão se deu no campo do direito. “não se conhece, na história do Brasil, quem tenha escrito mais sobre direito e liberdade dos finais da década de 1860 até início da década de 1880 do que Luiz Gama” (p.277). Seu conhecimento normativo- muito acima do debate público de então -, tinha objetivos práticos, alcançar a liberdade de seus clientes.
“Em comum aos três processos [ de Rita, Lucinda e família e Encarnação], a mofina aos juízes, explorando sobretudo a incompetência técnica e jurisdicional; o exame meticuloso dos fundamentos de direito da causa; e a questão de liberdade do suplicante, seja a liberdade de ‘viver sobre si’ e possuir reconhecido título para tal, ou liberdades inerentes a quem já possuía direitos e garantias civis” ( p.301).
Luiz Gama teve embates memoráveis com os juízes, Rego Freitas, juiz de direito da comarca; Santos Camargo, juiz municipal, Honorato de Moura, juiz de paz do distrito norte da capital e o juiz suplente Soares Muniz. Embates que ilustram o fato da literatura de intervenção de Gama subir de tom frente a juízes arbitrários e sentenças absurdas e ilegais.
A reação dos reacionários.
Os meses finais de 1869 foram marcados por conflitos na vida profissional e por decisões pessoais, como o casamento com Claudiana Fortunado Sampaio. A demanda de liberdade de Jacinto e Ana e família levou Gama a publicar a denúncia intitulada Escandalos. Nela, “o redator-chefe do Radical relacionava de modo inédito ‘movimento abolicionista’, ‘lei proibitiva do tráfico’ e o abominável delito de redução de pessoa livre ao cativeiro praticado por ‘possuidores de africanos livre’” ( p.312). Nela pede o depósito imediato de Jacinto e a “apreensão e remessa” de Ana para a capital. Petição negada por Rego Freitas (13.10.1869). Na resposta a negação de Rego Freitas, Gama discute a semântica do decreto regulamentar de 1832, apontando o dever dos juízes de interrogar, diligenciar e certificar as circunstâncias do fato. “Foi o estopim, O caso Jacinto e Ana detonou uma crise política que atirou Gama para fora da administração pública. Após doze anos de serviço público regular, Gama foi demitido do cargo de amanuense a mando do presidente da província de São Paulo” (p.318).
A demissão teve uma repercussão política não só no Brasil, mas nos círculos do movimento antiescravista internacional. O jornal The Anglo-Brazilian Times, publicado no Rio de Janeiro, saiu em defesa moral de Gama. “Gama fez da própria demissão palanque na imprensa para denunciar que o real motivo do seu expurgo não estaria relacionado ao seu comportamento individual; mas sim às suas lutas pelo direito `à liberdade, articuladas no juízo e na imprensa, sobretudo as mais explosivas delas, embasadas na denúncia de ilegalidade do tráfico de escravos pós-1831” ( p.323).
Seu velho amigo, o desembargador Furtado de Mendonça, ex-chefe e compadre de Luiz Gama teria alertado o pupilo dos riscos que corria. Ao comentar o conselho do amigo, Gama torna público fragmentos de sua bibliografia e a opção “de lutar por um Brasil ‘sem rei e sem escravos’, a exoneração era coisa pouca”( p.329).
Na linha de frente: com as armas do direito e da sátira
Em março de 1872, o jurista Rudolf Jhering propôs o conceito de “ luta”, como chave para se compreender as grandes conquistas da história do direito e o caráter processual da criação de direitos. Para ele, uma dessas conquistas foi a da “abolição da escravidão”
A escravidão no Brasil se fazia presente em todos os rincões do pais, de modo especial na província de São Paulo, espaço da luta anti-escravista de Luiz Gama. Na década de 1870, momento difícil na vida de Luiz Gama, ele obteve licença para advogar na comarca de São Paulo. Assim, quando o espaço da imprensa se fechou – empastelamento do Radical Paulista, em janeiro de l870 -, Gama ingressou no mundo do direito. No silêncio, em março de 1870, começou “a instrumentalizar a ação de liberdade [– na comarca de Santos-,] que se tornaria a maior da história do Brasil e das Américas “ ( p.339).
Tendo presente que a estratégia normativa de liberdade de Gama incluia a variável jurisdicional, Bruno Lima analisa vários casos começando pela famosa “Questão Neto”, que se referia a partilha do inventário do comendador português Ferreira Neto, em Santos. Aberto o inventário, “o juiz da comarca separou os escravizados da avaliação dos bens de raiz, para, em tese facilitar o andamento da ação truncada por recursos e embargos de todos os lados” (p.346).
O caso é acompanhado por Gama, que acaba habilitado a ser curador. Fato que desperta a ira dos herdeiros e sócios. Gama é ameaçado de morte. Ele escreve duas cartas, uma endereçada ao público e outra ao filho Benedito. Dois meses depois, ao receber as informações pedidas, Gama pede a nomeação de um depositório particular até que a sentença final seja transitada em julgado.
Nas réplica aos juízes e advogados dos herdeiros, afirma ser o depósito uma dupla garantia, seja do libertando como do suposto proprietário; relembra, ainda, a obrigação do juiz de garantir o depósito anteriormente à proposição da ação dos suplicantes e que os direitos de liberdade dos suplicantes vinha em primeiro lugar, além de explorar a categoria jurídica da manumissão.
A questão acabou indo parar no Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, que acolheu o argumento central de Gama: “a última vontade do senhor, direta, pessoal, expressa, nunca revogada em vida, produzia normativamente a liberdade” (p.377), confirmando a sentença do juiz de Santos.
Gama atuou em outros três processos no juízo local de Santos: o caso da Tomásia Carneiro de Campos, absolvida em Santos e posteriormente condenada pelo Tribunal da Relação do Distrito. Em outubro de 1870, Gama peticionou, numa detalhada descrição fática, o pedido de liberdade de Cabinda Luiza e seu filho Antonio. “Passo a passo, Gama ia consolidando a produção normativa da liberdade” ( p 386).
Foi derrotado na segunda e na terceira instância judiciária, pois, o argumento normativo da liberdade quebrava “a segurança jurídica da propriedade escrava, baseada em títulos de domínio fraudulentos, pois oriundos da compra de contrabando, estaria fatalmente ameaçada “ (p.391). A liberdade de Luiza foi revogada.
Tempos depois, Gama voltou a peticionar a liberdade do moçambique João. Novamente, a integra da fundamentação normativa apresentada por ele foi aceita, nesse caso não foi revogada
“A luta terminará quando os juízes cumprirem seus deveres”
Após a série de sentenças favoráveis à liberdade, o juiz municipal de São Paulo, Felício Ribeiro dos Santos Camargo – inimigo público de Gama-, enviou um ofício confidencial ao Presidente da província de São Paulo. Ele estava perturbado frente “a potencial recepção rotineira do argumento do dever de se declarar a liberdade em razão da ilegalidade do tráfico de escravos” (p.395-396).
“Desde fevereiro de l871, Luiz Gama e o juiz Santos Camargo se digladiavam na surdina sobre uma causa de liberdade específica que corria no juízo municipal de São Paulo” (p.398). Catorze pessoas de distritos diferentes – dez africanos e quatro brasileiros -, reivindicavam a liberdade. O processo se arrastava, frente as negações de Santos Camargo. Gama, então, leva o caso para a imprensa através de quatro artigos, desvelando aos leitores a ação judicial. O caso foi parar no Tribunal da Relação. “Contudo, a importância dessa causa de liberdade reside especialmente no fato de demarcar um ponto de não retorno na percepção pública da ação abolicionista de Gama nos juízos locais “ (p.408). Gama e seus correligionários abolicionistas foram chamados de comunistas/ Agentes Internacionais, que promoviam uma insurreição de escravizados. Gama não politizou as acusações permanecendo no caminho do direito. Resistiria, sim, se fosse necessário, afirmou, em 1871.
Em 26 de novembro de 1879, defendia a liberdade do pardo Narciso, na cidade de São Paulo, contra Tobias de Aguiar e seu famoso advogado João Mendes de Almeida. Caso que possibilitou a Gama uma compreensão mais profunda da “categoria jurídica da alforria testamentária e seus modos de realização” (p.421). Narciso ficaria livre por disposição testamentária de sua patroa falecida, posição que tinha o suporte do ex-presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, Caetano Alberto Soares, que defendia “ a impossibilidade normativa de se retroagir o estatuo jurídico do livre para escravo” (p.425).[7]
Entre 1872 a 1875, Gama atuaria em inúmeros casos na cidade de São Paulo, como na defesa de Polidora – alforria contra vontade do senhor-, este tipo de alforria era admitida “ quer por direito romano, quer por direito português , quer por direito pátrio” (p.430). Santos Camargo negou o pedido. Ao contestar,” Gama conecta as antigas Ordenações com a novíssima Lei do Ventre Livre. Para sustentar que a alforria forçada era legal” (p.432). Se respaldou, ainda, nos “comentários do jurista Cândido Mendes de Almeida sobre suas traduções normativas para o Brasil do século XIX” (p.432).
Frente aos embargos e as imposições do juiz Santos Camargo, Gama recorre a comunidade jurídica epistemológica de São Paulo, que se posiciona favoravelmente a seu favor no caso de Polidora. Fato, que leva Santos Camargo rever o despacho pregresso. No debate, Gama, também despe a veste de advogado para envergar a casaca de poeta.
Na década de 1870, Gama já tinha feito sua fama como advogado abolicionista, o que explica sua procura por gente de várias provincias e o fato de ser taxado como persona não grata em várias localidades e ser ameaçado de morte. “A despeito das ameaças e dos perigos iminentes, Gama viajou com frequência para diligenciar ações judiciais em dezenas de juízos no interior de São Paulo; e com mais regularidade ainda se correspondeu com advogados, imprensa e autoridades locais” (p.445).
Foi marcante sua produção normativa de liberdade na “província inundada de escravos” (p.445). O caso de Joana é emblemático, nele encarou o delegado de polícia de Jundiaí. Para o delegado, pouco valia a vida de Joana, frente aos interesses escravistas, Em Jacareí, pessoas livres – Elias, Joaquim e Marcelino -, tinham sido reduzidas à escravidão. Gama instaurou um processo criminal contra Raposo e pede ao juiz municipal que restituísse por sentença judicial a liberdade dos escravos. Na denúncia criminal afirma que “a manumissão não se inscreveria na categoria jurídica da doação, mas sim da concessão”(p.455-456). Em seguida, define o marco temporal de vigência dessa concessão. “Desde o ato de alforria, portanto, surgia o direito de liberdade” (p.457). O processo só terminará, em julho de 1876, com o decreto do recém fundado Tribunal da Relação, em favor da liberdade dos embargantes.
“Em agosto de 1875 –[no processo de manumissão do crioulo Antonio]–, seguiria caminhos processuais normativos muito similares aos de Jacareí” ( p.460). Em setembro de 1878, encontra-se envolvido com o caso de vários escravizados, que encontrava parado no juízo de Pindamonhangaba, Pede então ao presidente da Província de São Paulo que tome providência. Não se sabe do resultado, mas da dificuldade de se levar adiante as causas de liberdade.
Em julho de 1881, Gama voltaria às portas do juízo municipal de Campinas, defendendo o crioulo Francisco, seu pai não queria alforria-lo. A base do argumento utilizado por Gama era o da “impossibilidade normativa do cativeiro de ‘parente consanguíneo ou afim’”- ( p.470), do jurista português Antonio Mendes Arouca. O pedido de liberdade de Gama garantiu a liberdade provisória de Francisco. Logo após, Francisco foge para poder construir uma vida nova, longe muito longe do antigo e detestável cativeiro.
Crítica satírica ao Direito e método
Frederick Douglass, jornalista, líder abolicionista americano ao refletir sobre o significado do 4 de julho perguntava: “o que, para o escravo americano, é o seu 4 de julho” (p.475). É o dia que revela a injustiça da escravidão, pois, “se a independência representa a fundação de um estado novo, e este estado é escravista, comemorá-la seria celebrar a escravidão” (p.476).
A soberania nacional, inventada em 1776 e ratificada em 1787, com a Constituição, estava assentada num pacto racial silencioso que estruturava a sociedade . Na abertura da Constituição, o “Nós, o povo” era uma ficção cínica a serviço da manutenção e reprodução da escravidão” (p.476).
Gama, também, refletiu sobre a Independência do Brasil e seu pacto constitucional, tão injusto para com a população negra. “A sua chave de leitura seria o Direito” (p. 477).
Em 1876, ao longo das edições do periódico ilustrado O Polichinelo, Gama criou um dicionário satírico de 365 verbetes, intitulado Nomes e Definições. Na composição dos verbetes, particularmente, nos relacionados aos juízes e magistratura deixa transparecer sua visão crítica. Reserva dois verbetes inteiros para o Direito, satirizando até a etimologia. Amplia a crítica concluindo ser o Direito “um procedimento desregrado, bárbaro, grosseiro, brutal, impetuoso, como o das bestas, dos selvagens, das feras” (p.481-482).
Num dos verbetes, Gama para contar um pouco do seu passado, “estendeu os sentidos do ferrinho curvo (gazua) abridor de cofres e fechaduras para refletir sobre a categoria jurídica, entre elas as do crime e do direito” (p.484).
Não se pode esquecer que, entre 1850 a1869, Gama exerceu diversas funções na burocracia policial de São Paulo, participando de muitas investigações policiais. “E foi Por conhecer todos os dentes da gazua que teve a sacada original de tomar o ferrinho curvo dentado como denominador do Direito” (p.486). Verbetes como estelionato, código entre outros revelam o profundo conhecimento de Gama dos porões e dos palácio da Justiça no Brasil. “Provavelmente como todos os verbetes, o desenho também tinha seu pé em uma história concreta” (p.490). O desenho de Teodoro Xavier estampado na capa do O Polichinelo, “pinçava o catedrático como metonímia da academia jurídica”( p.496).
“O método empregado por Gama parte da história para chegar ao conceito” (p.496), Na verdade, “seu estilo de acessar fontes do direito e conhecer fatos jurídicos passava ao largo da discussão da moda na Academia” (p.496). Moda, que “alienava o direito de sua realidade social e o atava a ‘princípios abstratos’ transcendentais inalcançáveis senão por iniciados” (p.497).
Método´ semelhante ao de Zadig e do amigo P.P. Carneiro.[8] O procedimento realizado por eles na investigação dos crimes , tanto da rua São Bento – assassinato de uma menina escava -, como o da rua 25 de março - abandono de um recém-nascido-, ilustra bem o modo de operar. “Foi ouvindo testemunhas aqui e ali, trocando impressões e cartas, concatenando fios soltos, apurando informações no mais das vezes menosprezadas que Gama catava os cacos do mosaico de um fato social” (p.510).
Gama em algumas denúncias assinava Spartacus. “Muitos mais do que um pseudônimo, portanto, Spartacus era um símbolo de justiça que Gama carregava no lado esquerdo do peito” (p.511).
Sob o primado e além do Direito Natural
Em dezembro de 1880, Luiz Gama, gravemente doente, recebe a notícia do linchamento pelo povo de quatro escravizados que tinham assassinado o filho de um fazendeiro, em Bemposta. Fato que o leva a escrever “um artigo histórico que entrelaça crime, direito, raça, política e religião no tecido da literatura” (p.513).
A radicalidade da intervenção de Gama, começa pela inversão ao comentar o assassinato dos quatro escravizados e não o homicídio. Radicalidade expressa, ainda, na proposição jurídica de que “o escravo que mata o senhor”, touché, “cumpre uma prescrição inevitável de direito natural” (p.517). Ao longo do tempo, o axioma jurídico recebeu diversas formulações mantendo sempre a sua essência, “ a de que o crime de homicídio perpetrado pelo escravo na pessoa do senhor era moral e juridicamente justificável” (p.520).
Gama enquadra o tema no direito natural, contudo não se detém nele, concebendo pois “ a luta pela restituição do estado natural de liberdade, como ‘prescrição inevitável’ de ordem superior, a qual produziria efeitos normativos sobre relações jurídicas concretas” ( p.522). Para Gama, “nenhum dos quatro Espártacos, portanto, seria criminoso, quer sob o prima do direito natural, quer no enquadramento da lei geral” ( p.525-526).
A doutrina de Gama pode ser relacionada, ainda, com a categoria da legitima defesa do Código Criminal do Império. Assim “o escravizado que cometesse crime violento contra o senhor o cometia sempre forçado pela escravidão e por imperativo da liberdade. ‘Matava sempre em legitima defesa’” (p.525).
Dois conceitos circunscrevem a proposição revolucionária do “ escravo que mata o senhor” : “ o de crime e o de pessoa..., mas o primeiro conceito ilumina o segundo. Ou seja, o crime explica a pessoa” (p.527). Para Gama, “o que definia o que era ou deixava de ser um crime eram o caráter e a posição social do agente. Não era o fato, e não era a lei” (p.530).
Quanto ao conceito de pessoa no Brasil, o estatuto civil e a pertença étnica definiam a sua posição no sociedade. Para Gama, “O titular de direitos civis e políticos no Brasil do século XIX era o homem, branco, católico, proprietário e orgulhosamente escravocrata” (p.535). No Brasil da escravidão era banal o senhor matar o escravo e um crime o escravo matar o senhor.
“Do ponto de vista da religião oficial, o negro seria um desalmado decaído. Para a política um ser sub-humano inapto para ser cidadão de pleno direito. E, no campo jurídico, jamais chegaria a titularizar direitos e deveres em igualdade com os brancos – os senhores” (p.538).
A compreensão da natureza escravista e racista do Império ocorreu muito cedo, mas Gama a aprofundou entre 1868 e 1869, no Democracia e no Radical Paulistano. Para Gama, o pacato constitucional de 1824 era escravista, conciliava ironicamente princípios de liberdade com princípios de escravidão. Gama apelava para “o direito de revolução”, frente aos entraves de realizá-la, optou por um trabalho de base. Fundou escolas, bibliotecas, associações etc. Sendo cerceado na vias políticas, restou a ele o caminho do direito, o de construir o abolicionismo dentro do direito.
Com dois símbolos lê a história da formação do Brasil moderno: tumbeiro e túmulo, ambos se referem à morte. Durante um período ganhou suas causas postulando o argumento da liberdade, em ração do tráfico ilegal. Frente as dificuldades processuais nas ações de liberdade, pergunta então: “subsistem os efeitos manumissórios? ” ( p.550).
Para demonstrar sua permanência realiza um “minucioso inventário da multinormatividade do contrabando, o advogado, agora refeito em historiador, ligou normas, as mais diversas que cuidavam da mesmíssima matéria” (p. 550). Constata que, “ a lei de 1850 regulava a de 1831 e esta, por sua vez, complementava a de 1818” ( p.552) . Seus objetivos era similares, “com isso não teria havido um único dia de Império do Brasil em que o tráfico transatlântico não estivesse, em algum grau, proibido” (p.554). No entanto, “em um pacto político que envolveu todos os poderes constituídos, o tráfico transatlântico se tornou política de Estado” (p.554).
Do esquecimento ao panteão da História.
Paulo da Portela, ao ser impedido pela escola que fundara de desfilar com Cartola e Heitor dos Prazeres, “comporia os versos imortais de O meu nome já caiu no esquecimento “ (p.561-562). Ele só voltou a ser reconhecido pela escola após a sua morte, em 1949.
Lima traça um paralelo entre o esquecimento de Paulo da Portela e a vivida por Luiz Gama. “Dá até para arriscar que Gama anteviu o seu nome cair no esquecimento e, de continuo, não interessar a mais ninguém” (p.562).
Luiz Gama não testemunhou a enigmático acontecimento da abolição, pois, morreu em 24 de agosto de 1882. Seu cortejo fúnebre foi acompanhado por três mil pessoas. Para José do Patrocínio, que não chegou a tempo, sem Gama a abolição ficaria mais distante. Patrocínio não viu o jornalista e médico negro baiano Clímaco Barbosa convidar a multidão a jurar que a luta continuaria. “As mãos estenderam-se abertas para o cadáver”, conta Pompeia e a “multidão jurou” (p.564).
Mais tarde, esse momento no relato de Antônio Bueno de Andrade ganhou uma nova versão, quem puxou o discurso fúnebre e propôs o juramento coletivo, foi o ex-juiz de direito branco, conservador, Antônio Bento, desafeto público de Gama. Essa nova versão moldou a história do abolicionismo em São Paulo, ao dividir o movimento em duas fases e categorias; “a primeira, protagonizada por Gama, como legalista, moderada, e sem resultados expressivos; e a segunda, levada a cabo por Bento, como radical, revolucionário e com ganhos reais” (p.564).
Essa narrativa embranqueceu a luta abolicionista em São Paulo, embranquecimento levado adiante por Joaquim Nabuco, no seu livro O abolicionismo.” “O outrora companheiro de causa e que logo se tornaria o mais influente historiador do movimento relegou a Gama a segunda ou terceira prateleira da história” (p.565). Nabuco classificou o abolicionismo de Luiz Gama, Spartacus e de John Brown como baixo, no limite como mau. “Discreta e sutilmente, portanto, Nabuco jogava a obra do advogado dos escravizados, sempre dirigida a quem sofria a escravidão, ribanceira abaixo” (p. 566).
Com o tempo, Gama passou a história “como militante e exaltado, nunca como estrategista, político e teórico da sociedade. Passaria à história como rábula, não como advogado - e muito menos como jurista” ( p.566). A tradição oral das comunidades negras , especialmente de São Paulo e Salvador preservaram sua memória. A Imprensa negra, o seu legado político. [9] O mesmo povo do samba, que não deixou o nome de Paulo da Portela ser esquecido, não deixou, também, o nome de Gama perder-se no tempo. No carnaval de 2024, Portela cantou em versos a saga do filho de Luiza Mahin.
Pontuações finais
Enumerar os méritos do livro Luiz Gama contra o Império. A luta pelo Direito no Brasil da escravidão seria chover no molhado após ter recebido o prêmio Walter Kolb de melhor tese da Universidade de Frankfurt e, em 2023 a medalha Otto Habn de excelência científica da Sociedade Max Planck.
Nestas pontuações finais partilho algumas anotações, pensamentos e reflexões que colhi ao longo da leitura das quintas e poucas páginas , páginas estas compromissadas com a recuperação da vida e obra de Luiz Gama, um dos maiores advogados e juristas do Brasil, que no entanto permaneceu esquecido pela historiografia nacional do Império. Mas antes uma palavra sobre a primorosa e artística publicação: impecável composição gráfica, com ilustrações esclarecedoras e com as notas de rodapé, colocadas onde devem estar no pé da página. A equipe editorial da Contracorrente está de parabéns.
Ler Luiz Gama contra o Império do Brasil foi uma jornada, encarada com prazer e marcada por surpresas. Em seguida, acolhi o desafio de elaborar uma síntese, que mantivesse a estrutura básica do texto - exercício que exigiu cuidado e paciência -, ao realizá-la, minha intenção primeira foi de oferecer uma chave de leitura e, minha esperança a de que fosse um convite aos futuros leitores(as) para uma visita ao original.
A leitura me proporcionou muitos insights, relembro alguns. Ficou muito nítido que a compreensão do Brasil de hoje, passa necessariamente por uma compreensão densa do século XIX. Gama, na sua diuturna luta pela liberdade dos escravizados e escravizadas , expos as vísceras do complexo histórico do século XIX. Pode-se identificar nele as matrizes de nossos problemas sociais, políticos e religiosos atuais.
Gradualmente, percebi que as grandes questões que motivaram a fantástica pesquisa realizada por Bruno Lima, foram sendo respondidas lenta e minuciosamente por ele: como Luiz Gama aprendeu e exerceu o Direito; qual era a sua metodologia de trabalho no campo do Direito? Lima visualiza como o advogado Luiz Gama, a partir de elementos marginais do processo, costura pequenos fragmentos, os liga e por fim a partir deles tece a argumentação jurídica de inúmeras demandas de liberdade se constitui num dos pontos altos da leitura. Outras perguntas vão sendo respondidas: Como na defesa de suas causas demonstrou amplo conhecimento do Direito, conhecimento este revelado nos diálogos com importantes advogados e juristas do Brasil e do exterior. Em fim quantos escravizados libertou?
A leitura do capitulo terceiro, intitulado Literatura e do quarto, Direito me levou a concluir que Luiz Gama, sem sombra de dúvidas, pode ser considerado um dos precursores dos direitos humanos no Brasil. Sua proposta de um projeto político, de um projeto democrático é algo surpreendente, pois, não só levava em conta os grandes desafios do contexto, como apontava possíveis soluções para se superar as estruturas escravocratas, presentes em todas as estruturas e práticas da sociedade imperial. Assim, desnudou a política da escravidão em curso no Império do Brasil, que tinha no Direito um de seus pilares. Entende-se então sua densa crítica ao exercício do Direito no Império, para em seguida resgatar, criar o Direito à liberdade. Entende-se, então, que a excepcionalidade da escravidão no Brasil repousava no fato jurídico de ser ela instituída na cúpula do estado Nacional.
Desnuda, assim, a política da escravidão em curso no Império do Brasil, que tinha no Direito um de seus pilares. Entende-se então sua densa e mordaz crítica ao exercício do Direito no Império, para em seguida resgatar um Direito a serviço da liberdade. Desnudava, pois, um Direito que dava suporte legal à escravidão do país, um autentica máquina geradora e mantenedora do racismo.
Luiz Gama, gradualmente, partindo de leis já promulgadas, mas não cumpridas deu corpo e rosto ao direito de liberdade. Se por um lado tece críticas ao Direito, por outro cria o direito à liberdade das pessoas escravizadas. “Não se conhece, na história do Brasil, quem tenha escrito mais sobre direito e liberdade dos finais da década de 1860 até início da década de 1880 do que Luiz Gama” (p.277). No entanto, ele passou para a história como um escravo que conseguiu sua liberdade ou então como um rábula e não como advogado e muito menos como jurista competente e atualizado.
Bruno Lima, em Luiz Gama contra o Império, numa linguagem leve e precisa partilha com seus leitores (as) informações, reflexões e análises generosas que se transformam num claro convite a resgatarmos a figura ímpar de Luiz Gama, que em pleno período escravista soube colocar as técnicas mais sofisticadas do Direito a serviço de seus irmãos (as) escravizados.
Digno de nota, a memória de Luiz Gama foi preservada pela tradição oral das comunidades negras de São Paulo, seu campo de batalha abolicionista e de Salvador. As comunidades negras não esqueceram ter sido ele o grande abolicionista da cidade de São Paulo.
Luiz Gama contra o Império é um livro muito bem sucedido ao propor uma abordagem documental e uma análise historiográfica a partir do Direito, que discrimina e historiciza as fases inquisitoriais dos processos de demanda de liberdade. Livro que se transforma num guia para a compreensão do exercício do Direito na cidade de São Paulo nas últimas décadas do século XIX, na transição da Monarquia para a República e como um passo decisivo para recolar Luiz Gama no panteão da história do Brasil. Axé
[1] LIMA, Bruno Rodrigues. Luiz Gama contra o Império. A luta pelo direito no Brasil da escravidão. São Paulo: Editora Conta corrente,2024, ISBN 978-65-5396-166-1, pp..629. Passaremos a indicar apenas a página do livro.
[2] Ver PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil,1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. O autor se propõe realizar “uma análise que unisse diacronicamente enunciação parlamentar, formação partidária, articulação social, dinâmica do tráfico negreiro, transformações institucionais do aparelho do Estado e ações dos escravos entre 1826 e1865” ( 2011, p.14)
[3] Para um amplo estudo da revolta ver REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história dos levante dos Malês,1835. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [1986].
[4] Para um amplo estudo do cemitério do Valongo, ver PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond:IFHAN,2007.
[5] Para uma releitura da Guerra do Paraguai, ver DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras 2003.
[6] Cf. ALENCAR, José de. Ao Imperador: novas cartas políticas de Erasmo. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Typ de Pinheiro & Comp. 1866.
[7] Ver PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas: Editora da UNICAMP,2001. O autor analisa a ação e o pensamento conservador dos jurisconsultos imperiais, ligados ao Instituto dos Advogados Brasileiros, diante das disputas judiciais entre a escravidão e a liberdade que tencionaram os tribunais do pais no século XIX.
[8] Para uma visão mais ampla do método Zadig, ver GINZBURG, Carlo.” Sinais: raízes de um paradigma indiciário, in: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo; Companhia das Letras, 2002.
[9] Ver DOMINGUES , Petrônio. Verbete Imprensa Negra, in: SCHWARCZ, Lília M.; GOMES, Flávio.dos Santos. Dicionário da escravidão e liberdade. 50 textos críticos. São Paulo; Companhia das Letras, 2018, pp.253-259.



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