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As religiões Afro-brasileiras: origem, desenvolvimento e presença no Brasil

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O mais recente livro da Coleção Religiões Mundiais, coordenada pelo professor Frank Usarski, lançado recentemente pela Editora Vozes, intitula-se Religiões Afro-Brasileiras, escrito pelas autoras Dilaine Soares Sampaio, Sônia Regina Corrêa Lages e Zuleica Dantas Pereira Campos.1 O prefácio é de Frank |Usarski. Neste Essay Review quero apresentar algumas ideias presentes no texto, como uma brevíssima amostra da extraordinária riqueza de informações que o livro oferece aos futuros leitores e leitoras. Julgo necessário realizar um breve comentário sobre o prefácio e a introdução. O Prefácio concilia num texto sintético e cirúrgico erudição e dimensão critica. Importante ter questionado a tentação sempre presente de absolutizar conceitos. Mais importante, ainda, ter colocado as religiões afrodiaspóricas num outro patamar, ao resgatar sua “dimensão de universalidade”, negado por visões redutivas e coloniais. O respaldo teórico do prefácio não só justifica a reflexão, como aponta veredas a serem trilhadas no âmbito da Ciência da Religião. Além disso, suas quatro páginas escondem e revelam muitas horas de pesquisa e conhecimento acumulado.

Na Introdução, as autoras, após saudarem Exu, apresentam as chaves de leitura, isto é, as perspectivas teóricas metodológicas necessárias para uma densa recepção do livro: Ao assumir a categoria pluriverso para referir-se a pluralidade de manifestações religiosas afro-brasileiras no lugar de universo; ao ter presente que a religiosidade e a espiritualidade transcendem a dimensão institucional das religiões; ao superar uma visão colonialista, branca e masculina das religiões afro-brasileiras; ao acolher o conceito de epistemicídio - processo de supressão dos conhecimentos locais -, realizado por um conhecimento alienígeno e operar numa perspectiva decolonial reconhecendo a presença da colonialidade, as autoras apresentam a moldura dentro da qual o texto precisa ser recebido. “Por fim, buscar uma perspectiva não generificada para nós[ autoras] significa estarmos atentas às clivagens de gênero, e isso inclui a sutileza de abandonar a linguagem dos masculinos plurais/universais, nomeando com nome e sobrenome autoras e autores ao longo do texto e especialmente nas referência finais” (2025, p. 27).2

As autoras, partindo do campo de estudos da Ciência da Religião, nos apresentam a Candomblé Ketu e a Umbanda visando romper preconceitos, superar o racismo religioso e mostrar a riqueza religiosa das manifestações afro-brasileiras tão pouco conhecidas.

As religiões Afro-brasileiras

O capítulo primeiro intitulado Origem e expansão (pp.35-81) se propõe a responder as seguintes questões: como compreender a origem das religiões afro-brasileiras e o conceito de diáspora; como se configuram as práticas religiosas africanas na Colônia e no Império até a institucionalização dos primeiros terreiros durante o século XIX; que violências sofreram as tradições religiosas afro-brasileiras no país e como entender a questão do sincretismo e antisincretismo?

Entender o contexto das religiões em África ajuda-nos a compreender a sua transplantação para o novo mundo. “As concepções básicas das forças humanas e espirituais, procedimentos rituais, uso comum de objetos e símbolos e um complexo panteão de divindades de diversas regiões do continente e pertencentes a diversas culturas aqui se aglutinaram, se inventando e reinventando, formando um permanente e continuo religioso da diáspora” (p.40).

A diáspora africana trouxe para o país milhares de escravizadas e escravizados com seus modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e forma de organização política estabelecendo uma ponte entre África e Brasil. A diáspora africana é um processo complexo, uma migração forçada, multifacetada, é um “chão para as muitas formas de resistir e reexistir”.

Uma vez desembarcada no país, a população negra não só trabalhou, mas viveu sua religiosidade e espiritualidade. As práticas religiosas africanas, tanto na Colônia, como no Império eram vistas como “feitiçaria” e “superstição”. Entre as expressões religiosas africanas pode-se enumerar os calundus - uma constelação de práticas variadas -, os batuques, o acontundá ou a dança de tunda.

No século XIX, os terreiros se constituíram em estruturas urbanas, “funcionavam como lugares de sociabilidade, confraternização, acolhimento, lazer e solidariedade“ (p.53). As autoras mencionam a Casa Branca do Engelho Velho, em Salvador, o Ilê Obá Ogunte, em Recife e a Casa da Mina, em São Luiz.

“Foi a partir das macumbas cariocas que nasceu, no início do século XX, uma religião eminentemente brasileira, a umbanda, que aglutina elementos das tradições africana, ameríndia e europeia” (p.58). As narrativas relacionadas com a criação da umbanda “ fizeram parte de um projeto social que incluiu Zélio de Moraes e o Caboclo das Sete Encruzilhadas” (p.60). A institucionalização ocorreu nas décadas de 1920 e 1930. Na realidade, o correto seria falar de umbandas dado a diversidade de suas formas de sincretismo e hibridismo.

A perseguição às religiões afro-brasileiras foi uma constante na história do país. Uma das mais célebres foi a perseguição aos xangôs, em Alagoas. no ano de 1912, perseguição retomada mais tarde no período do Estado Novo. “Nesse contexto, Estado e Igreja se juntaram numa caçada a todos aqueles que ameaçavam a ordem estabelecida“(p.67). No contexto sócio político atual, perseguições e intolerância ainda se fazem presentes ameaçando a liberdade e o direito de culto. Graças à atuação política e jurídica dos praticantes das religiões afro-brasileiras tem ocorrido com mais frequência a defesa e luta pelos seus direitos.

Seriam as religiões afro-brasileiras sincréticas? A temática do sincretismo continua gerando inúmeros debates, deve ser mantido ou abolido? Sincretismo e reafricanização fazem parte da constituição das religiões afro-brasileiras. Não se pode esquecer que, “o sincretismo envolve elementos religiosos e culturais mais complexos e profundos, muito enraizados nas práticas dos terreiros” (p.80). Na atualidade, os terreiros mais novos se inserem na dinâmica da reafricanização, os mais antigos e outras expressões religiosas mantem a tradição.

O universo religioso do Candomblé e da Umbanda

Princípios, valores e práticas religiosas é o título do longo capítulo segundo (pp.83-181), que num primeiro momento apresenta os elementos comuns e definidores da cosmopercepção africana e no segundo volta-se para as práticas litúrgicas e finalmente foca a umbanda e seu desenvolvimento no Brasil.

A formação do campo religioso “afro-brasileiro” teve seu lastro na memória e nas experiências das escravizadas e escravizados que aqui desembarcaram. “A constituição, pois, de uma comunidade religiosa afro-brasileira é resultado de um processo intenso de reconstrução de novas instituições religiosas por uma pluralidade de fragmentos culturais que se interpenetraram e que possibilitaram a releitura das experiências religiosas de origem africana” (p.87). Falar de religiosidade afro-brasileira é referir-se a uma diversidade de expressões religiosas, “como o candomblé, umbanda, quimbanda, terecô, pajelança, jurema, tambor de mina, tambor da mata, batuque etc” (p.87).

Os grandes grupos culturais iorubás, bantus e fons foram responsáveis por diversas expressões religiosas: os iorubás pelo candomblé nagô, que engloba o candomblé ketu, ijexá, xambá e o batuque e cultuam os orixás e a ancestralidade; o grupo bantus pelo candomblé de Angola e o fon pelo candomblé jeje, com seus voduns. A linguagem ritual religiosa presente nos terreiros é essencialmente simbólica e expressa a relação com o sagrado. “É no terreiro, espaço sagrado, onde os dramas míticos são periodicamente rememorados e a sacralização da existência pode ser vivida e sentida na religião” (p.92).

O modelo teórico do complexo fortuna-infortúnio sinaliza a dimensão religiosa e suas práticas, preocupadas com a “sustentabilidade da vida neste mundo”. “A fé nos orixás seria no candomblé a fonte primeira da teologia, e a alimenta constantemente” (p.94). A convivência simbólica e momentânea com os deuses ocorre através do exercício ritual.

“A tradição oral é um elemento constitutivo das religiões afro-brasileiras e tem sido essa a forma de transmissão do conhecimento religioso desde a sua configuração no Brasil” (p.99). A tradição oral tem como ponto central a ancestralidade, que deve ser compreendida como uma categoria analítica. Na África, os orixás eram considerados antepassados, líderes de clãs, no Brasil, personificação das diversas forças da natureza. Eles tem a incumbência de auxiliar os seres humanos em sua existência.

Ser supremo e criação

As denominações que expressam o Ser Supremo: Olofim, Oludumaré e Olorum. “ Olofim seria o aspecto criador por excelência, a razão de todas as coisas, a personificação da divindade; Oludumaré, o senhor de todo o universo, com tudo o que nele existe; e Olorum, o Ser Supremo, a energia e a força vital que dá movimento aos cosmos” (p.102). Duas são as formas de existência: Orum, o mundo dos deuses e antepassados e Ayê, o mundo dos seres humanos. No princípio estavam unidos. A unidade existencial é buscada pelo candomblé, no momento da incorporação essa unidade se refaz. “Os orixás são divindades que receberam a incumbência de governar o mundo, cada um com características próprias e tarefas especificas” (p.107).

Após a criação, os seres humanos são apresentadas a Ajálá, o oleiro que concede um ori, a cabeça mítica de cada ser humano, esse ori é imortal, após a morte de seu possuidor ele retorna ao Orum. “Receber um ori, pois, significa miticamente nascer, desprender-se da massa progenitora” (p.110). O corpo no candomblé recebe o emi, o sopro divino emanado de Olorum. O axé é o princípio dinâmico da existência, a partir dele tudo acontece. O axé propicia a ligação entre o iniciado e seu orixá, a força espiritual que rege a sua existência.

No candomblé se cultua 16 divindades, sendo exu o princípio dinâmico da existência, sem ele a vida não será possível. “Exu seria o mais humano dos deuses” (p.119). “Cada pessoa tem um Exu que a acompanha permitindo que ela evolua e se comunique com seu orixá” (p.120). As iyá-mi carregam o poder ancestral feminino. “A Iyá Mi Oxorongá, Mãe Ancestral, lidera todas as iyá mi e está ligada à Odudua ou Odua” (p.120). Compõem o quadro das deusas do Orum: Nana, Oxum, Iemanjá, Obá, Euá, Oiá (Iansã).

As autoras, recorrendo às narrativas míticas, apresentam os orixás, seja os que compõem o panteão masculino como o feminino. “Quanto às divindades que consagram o panteão masculino e que estão presentes na maioria dos terreiros, destacam-se os orixás, Oxalá, Ogum, Oxóssi, Ossaim, Xangô, Oxumaré, Obaluaê e os Ibejis, Iroco e Logundé, aparecem com menos frequência” (p.128). As autoras na apresentação tanto do panteão masculino quanto feminino recorrem aos itans.

“Na mitologia iorubá, o Ifá é a forma como o ser humano se comunica diretamente com o Sagrado, em que a divindade se expressa através dos odus, que condensam os saberes do deus”(p.139). A interpretação do Ifá, expressão religiosa, filosófica e de conhecimento, é de responsabilidade do babalorixá. No Brasil, pais e mães de santo realizam o jogo de búzios.

Cerimônias e práticas litúrgicas

O candomblé é uma religião sem dogmas, que cultua os orixás e se expressa através de expressões litúrgicas ricas e complexas. “O rito é, pois, a expressão prática de uma experiência religiosa... O corpo é o alvo do rito” (p.141).

O processo de iniciação do filho de santo é lento, nele se começa sendo abiã - período de aprendizado e opção -, em seguida, iaô e por fim ebomi. “O iniciado terá então obrigações para cumprir em relação ao orixá de sua cabeça e à comunidade religiosa” (p.143).

Através do jogo de búzios se sabe qual é o orixá de frente ou o dono da cabeça do iniciado, do abiã, que pode ser chamado ou não. Se chamado tornar-se iaô. Dois rituais sinalizam sua inclusão na família de santo: quelê e o borí. O processo de iniciação reconstrói a família mítica, família consagrada aos deuses. O borí antecede o ato litúrgico da raspagem da cabeça, “é o ‘sim’ do iaô a essa nova vida, é a aceitação de que agora em diante sua vida será devotada ao orixá, dono de sua cabeça, e a comunidade que ele integra...” (p.148).Na iniciação ou feitura do santo fixa-se o orixá da cabeça ou orixá de frente , e o adjuntó, segundo orixá da pessoa. No período de reclusão no roncó acontece o primeiro contato com a divindade, dá-se o início da construção da pessoa.

“As oferendas são de crucial importância para o candomblé, uma vez que são elas que fazem a comunicação entre o Ayê e o Orum” (p.151). As obrigações com o santo contribuem para renovar os vínculos com orixá, ao longo da vida. “O culto no candomblé é realizado num espaço sagrado denominado de barracão, terreiro, casa de candomblé ou roça” (p.155), espaço que representa a África mítica. No entorno do terreiro encontram-se pequenos quartos que abrigam os orixás, na entrada estão os assentamentos de Exu Ogum, protetores da casa. No terreiro acontecem as festas, momento da presença dos orixás, que saúdam o pai e a mãe de santo e os tambores, instrumentos divinos.

Iku é uma entidade masculina e tem relação com a terra. Como ebora, relaciona-se com as divindades, colocando em comunicação os dois planos da existência, Ayê e Orum”(p.158). Iku é auxiliado por Euá na mudança dos mortos para o Orum. “No candomblé, a morte de uma pessoa iniciada implica a realização de ritos funerários que a ajudarão a se libertar do seu corpo físico” (p.160).

Umbanda religião brasileira de matriz banto

A umbanda, pois, é uma religião mediúnica, em que o corpo do médium, chamado ‘cavalo’ ou ‘aparelho’, recebe uma imensa quantidade de espíritos que precisam voltar à Terra para ajudar seus filhos de fé ou para evoluir espiritualmente” (p.164-165). Na umbanda homenageia-se os orixás, mas não são incorporados. Cultuam-se os espíritos dos pretos-velhos, indígenas, caboclos, crianças, exu, pombagira, marinheiros, boiadeiros e ciganos. “todas essas entidades são representantes das identidades nacionais que foram excluídas ao longo da história” (p.165). Através da incorporação se dá o convívio entre os mortos e os vivos.

“O panteão umbandista não é homogêneo, não reivindica uma verdade, nem dogmas, nem fundamentalismos, o que seria totalmente contraditório à sua religiosidade aberta e receptiva à convivência com a diferença, expressa no seu panteão” (p.167). A umbanda tem sete linhas relacionadas aos espíritos que se manifestam nas casa de culto, por exemplo, linha Oxalá, linha Yemanjá. No pluriverso sagrado da umbanda, os orixás e os inúmeros guias espirituais que recebem as vibrações das divindades fixam seus domínios nas linhas direita e esquerda. “A direita é o lugar que ocupam os orixás sincretizados com os santos católicos...Já a esquerda é identificada com a contravirtude e é onde se localizam exus e pombagiras” (p.170).

Zeladores é o nome dado aos chefes de terreiro, que tem como auxiliares os cambones, médiuns que não incorporam. “A mediunidade e o transe são o que possibilitam a comunicação entre o sagrado e o plano terrestre, momento em que os espíritos de desencarnados podem voltar a agir em favor dos filhos de fé e de pessoas que, esporadicamente, vão ao terreiro nos momentos de algum sofrimento” (p.174-175). O desenvolvimento da mediunidade é acompanhado pelos zeladores. “ É a chefe do terreiro que vai dizer se o médium já está preparado para incorporar todas as entidades e receber os consulentes” (p.177).

O médium precisa saber qual é o guia ou sua entidade de frente, é a própria entidade que lhe revelará. “Na umbanda, caridade é curar, e essa cura pode se dar em diferentes níveis, no corpo: no espirito e nas relações do filho ou da filha de fé com a sociedade“ ( p.178).

Em defesa das religiões afro-brasileiras

O capítulo terceiro, Manifestações institucionais (pp.183-198) trata de dois temas, a saber, o terreiro como um espaço institucional e o movimento federativo das religiões afro-brasileiras. Só no século XIX ocorreu o surgimento dos terreiros como conhecemos hoje. “O pluriverso das religiões afro-brasileiras se organiza de forma bastante distinta das grandes religiões monoteístas”(p.184). Autonomia e autoridade são marcas dos terreiros. A relação entre os terreiros gesta uma grande família marcada pelos laços sagrados da filiação religiosa. Os conceitos de instituição, comunidade e nação de candomblé podem ser aplicados aos terreiros.

No Brasil, a partir do decreto 6040, de 2007, os terreiros são incluídos na categoria ampla “povos e comunidades tradicionais”. “O processo de patrimonialização, com todas as dificuldades enfrentadas, tem avançado muito lentamente, devido ao racismo estrutural que se impõe, mas ainda assim tèm constituído um importante fator de preservação de memória, de usufruto de direitos historicamente negados” (p.194). O tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Terreiro da Casa Branca, em Salvador ilustra bem esse luta.

O movimento federativo mesmo importante tem sido muito pouco estudado. Desde a década de 1930, o movimento tomou corpo no país. “Os estudos demonstram que, como toda instituição, as associações e federações funcionaram também como espaços de poder e de disputas” (p.195). A primeira federação fundada no país foi a Federação Espírita de Umbanda (FEU). Em 1973 foi criada a Federação Brasileira de Umbanda. Com relação ao movimento federalista, umbanda e candomblé tomam diferentes caminhos. O movimento federalista se fez presente muito cedo no meio umbandista, sob influência do modelo kardecista, já no candomblé bem mais tarde.

As autoras apresentam duas instituições importantes, ambas sediadas em São Paulo: o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), fundado em 2019 e a Federação Crença, fundada em 2006. A verdade é que a despeito de todas as garantias constitucionais, defender as religiões afro-brasileiras é ainda uma necessidade.

Um olhar sobre outras tradições religiosas afro-brasileiras

Outras tradições religiosas do pluriverso afro-brasileiro (pp.199-240) é o título do capitulo quarto no qual são apresentadas algumas tradições, expressões religiosas afro-brasileiras, como o catimbó-jurema, o xangô, o tambor de mina, a pajelança e o batuque.

Catimbó-jurema

Religião afro-brasileira, com presença marcante nos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, é ainda pouco estudada. Os estudos pioneiros de Mário de Andrade (1933) e de Câmara Cascudo (1931) apresentam uma visão pejorativa do catimbó-jurema. A palavra jurema é polissêmica, pode significar: a árvore, a religião, uma cidade encantada, uma entidade, as bebidas sagradas. “A jurema enquanto bebida sagrada é plural não somente nos modos de fazer, mas nos modos de usar” (p.204).

Entre as etapas do processo de iniciação temos: o batismo da jurema, a consagração e os tombamentos, ou “tombos da jurema” e “feituras de jurema”. “Além da transmissão oral e da literatura juremeira, que tem crescido, há os saberes e fundamentos presentes nas toadas ou nos pontos cantados de jurema que contêm as narrativas encantadas da tradição e da ciência juremeira” (p.207). O panteão traz uma diversidade de divindades e entidades espirituais, em alguns, Jesus Cristo é considerado mestre.

O responsável pela descoberta da jurema foi Malunguinho, era um negro, um escravo. “Na cosmopercepção do catimbó-jurema são os denominados reinos, cidades e aldeias encantadas da jurema, que são dotados de grande complexidade” (p.210).

Xangôs

Uma religião muito popular em Pernambuco é xangô, religião baseada no culto aos orixás, que gira em torno do sacrifício de animais. “Um terreiro de xangô fundamentalmente se baseia na relação entre pai/mãe e filhos de santo “(p.212). No topo da estrutura hierárquica encontram-se o babalorixá ( sacerdote) e a iyalorixá ( sacerdotisa), seguida da mãe pequena e das iabás, cada um exercendo funções específicas. Na posição hierárquica, os tocadores de tambor, ou ilus, equivale a dos assistentes do sacerdote.

As festas públicas dedicadas aos orixás denominadas de “toques”. “Ao fim dos ‘toques’ ocorre a chamada ‘ajeum’. A palavra significa Comida”(p.213). No xangô todos comem, humanos e não humanos. A estrutura do xangô vem se modificando, como resultado do contato com “Mãe África”, fruto do processo de reafricanização. Rituais e estruturas hierárquicas estão imbricadas. Entre os principais temos o ritual de iniciação, ritual do Borí (Ebori ou Obori) e toques.

Desde a década de 1930, o xangô foi estudado pela escola de Psiquiatria Social, sob forte influência do pensamento de Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Estudos que colocaram sob controle o culto a xangô. Os xangôs foram muito perseguidos no período da ditadura de Getúlio Vargas(1937-1945), tanto pelo Estado, como pela Igreja católica. Os devotos de xangô resistiram de várias maneiras.

“Transformações na cultura, na economia e na sociedade também levaram os terreiros de xangô a repensarem suas práticas , seus rituais e suas indumentárias” ( p.218). No século XX, o Movimento Negro Unificado reivindica em prol das religiões negras e de outros segmentos excluídos. As autoras apresentam vários terreiros de xangô, entre eles “O Sitio do Pai Adão, fundado em 1872, e a Casa das Tias do Pátio do Terço, e da imagem da Badia, sucessora das Tias, todas falecidas” (p.219).

Tambor de Mina

Tambor de Mina é uma religião de origem afro-brasileira presente no Maranhão trazida para o Brasil pelos escravizados e escravizadas do Daomé, atual Benin. A religião dos voduns ewê-fon ou jeje se expandiu para o Pará e Amazonas. Até a década de 1960, se desconhecia a religião dos voduns.

A Casa das Minas e a Casa de Nagô no Maranhão, hoje extintas, estiveram à frente da religião dos voduns, no entanto não prepararam gente para abrir novos terreiros. Entre as variantes do tambor de mina temos o terecô, presente em Codó e no vale do Itapecuru (MA).“No tambor de mina, entidades espirituais africanas (voduns e orixás) são veneradas e incorporadas durante estados de transe, assim como entidades espirituais que passaram a ser reconhecidas pelos negros no Brasil, como gentis e caboclos” (p.222). As divindades ( voduns e orixás) e os encantados constituem o panteão do tambor de mina Os encantados são entidades de origem não africana que abrange diversas nacionalidades (europeus, turcos e indígenas brasileiros). Temos os encantados que se assemelham aos voduns (nobres gentis nagô ou senhores da toalha) em geral são brancos.

“ No Maranhão, os terreiros de mina estabelecidos por africanos são espiritualmente liderados por vodum ou orixá, como Zomadonu e Xangô” (p.224). As festas do tambor de mina tem cânticos e rezas católicas. Alguns terreiros celebram o Natal, a festa de Santa Bárbara, de São Lázaro e o do divino. A possessão e o sacrifício de animais são sua forma principal de culto.

Pajelança

A prática da pajelança se apresenta no Brasil sob três categorias: pajelança indígena, cabocla e pajelança de negro. Para Parés, “a pajelança cabocla, derivada da pajelança indígena, foi progressivamente apropriada pelos africanos e crioulos e que o processo de caboclização e crioulização foi favorecido pelo grande número de convergências existentes entre as tradições tupi-caboclas e as africanas, especialmente no que diz respeito à ideologia da cura e da feitiçaria” (p.225). Na pajelança cabocla, o pajé recebe entidades denominadas “encantados” ou “caruanas” e realiza seções de cura. “Os encantados são entendidos como pessoas que ‘não morreram e nem estão vivas’, habitam um universo intermediário denominado ‘encante’ ou ‘encantaria’ “(p.232). A pajelança cabocla sofreu influência do catolicismo e de práticas africanas. O pajé é o especialista médico que cura todas as doenças, tanto as “mandadas por Deus”, como as normais. No Maranhão e no Pará a presença da pajelança de negro é grande. A “cura de feitiço” e “das passagens” é sua especialidade. “Brinquedos de Cura” é o nome dado aos rituais festivos da pajelança. Nos rituais de cura da pajelança não há incorporação de orixás e voduns.

Batuque

Pode-se apresentar o batuque como “um divertimento, um culto e uma cerimônia fúnebre “ (p.232). Seu culto no Rio Grande do Sul só foi introduzido entre 1930 e 1940. O batuque é constituído por várias nações, como oyó, ijexá, jeje e cabinda. A “casa de nação” ou “casa de batuque” é o espaço das atividades rituais. nela se encontram: o salão, local do culto, o pejê ou pará, quarto do santo e a cozinha ritual. “A comida tem uma importância crucial no ritual, pois ela é a base do sistema de trocas de bens simbólicos entre os humanos e os orixás”( Corrêa) (p.234).

No ritual de iniciação acontece a lavagem de cabeça e de contas, seguida do borí. nele se dá de comer e beber à cabeça e finaliza-se a consagração ao orixá de cabeça e a Bará (Exu). O sacrifício de animais é essencial no processo de feitura, o sangue do animal é aspergido na cabeça e no corpo do iniciado. “No aprontamento a pessoa devota e seus acutás, pedras que têm a potência dos orixás, são iniciados conjuntamente” (p.237).

O batuque cultua 12 orixás, com seus diferentes símbolos e sacrifícios específicos. No batuque, encontramos uma forte correspondência com santos e santas católicas. No batuque, a pessoa têm dois orixás: o guardião da cabeça e o dono do seu corpo. A feitura de santo é desfeita na hora da morte, por meio do eru, rito de desligamento. “ O aressum, denominação dos ritos mortuários, é necessário para que o egun, espírito do morto , se desapegue” (p.240).

O presente e o futuro das religiões afro- brasileiras

No capitulo quinto, intitulado Situação atual e perspectivas para o futuro (pp.241-300), se apresenta o retrato atual das religiões afro-brasileiras e as pessoas adeptas, visando mostrar “as mudanças sociais vividas pelas religiões afro-brasileiras em relação a questão de gênero, escolaridade e cor” (p.242).

De acordo com o Censo de 2010, 0,31% da população se autodeclarou como pertencente às religiões afro-brasileiras. Os dados já divulgados do censo de 2022 mostram que o número de praticantes passou de 0,31% para 1%. Vale a pena lembrar que os números relativos às religiões afro-brasileiras são sempre subestimados, devido ao histórico de perseguições ao processo de constituição das religiões afro-brasileiras no país. Na verdade, o Censo não expressa o quantitativo dos adeptos das religiões-afro-brasileiras.

Estas vêm passando por mudanças deixando de ser uma religião étnica para universalizar-se e temos a adesão de pessoas com nível superior. As lideranças femininas se destacam, no entanto, estudos mostram que há violência de gênero no âmbito das religiões afro-brasileiras, relacionada com o processo em curso de masculinização dos terreiros.

Transmissão de saberes e relação com o Estado e as religiões

Como se dá a transmissão de saberes no âmbito das religiões afro-brasileiras na era digital? Na atualidade, elas têm recorrido a mídia digital para transmitir conhecimentos. As autoras ilustram o recurso à essa nova forma de transmissão de conhecimento apresentado as atividades do Babalorixá Adenírí Síkúrù Salámí, o BaBá King, de Mãe Stella de Oxóssi e do site umbandaead.com, todos envolvidos com a transmissão de saberes afro-brasileiros.

A presença das religiões afro-brasileiras no ciberaxé é uma realidade. “O ciberaxé foi visto como um espaço de confluência de dois orixás: Exu e Ogum” (p.267) Exu/comunicação e Ogum/ tecnologia.

Qual a relação das religiões afro-brasileiras com o Estado e as outras religiões? As religiões afro-brasileiras enfrentam dificuldades para exercer seu direito de culto. Seus embates com o judiciário dificultam esse processo. O longo processo contra a TV Record e a Record News ilustra bem o racismo e o racismo religioso presente nas estruturas jurídicas do país. Quanto ao conceito de intolerância religiosa, hoje, se pensa que ele não dá conta para explicar a violência contra as religiões afro-brasileiras. O conceito de racismo religioso se constitui numa forma mais violenta de intolerância religiosa. Um bom caminho para solucionar os problemas é pensar os dois de modo complementar, de modo intersecional.

O caráter não exclusivista é uma marca indelével das religiões afro-brasileiras. “Se as religiões afro-brasileiras têm como princípio o respeito às demais religiões, infelizmente elas não recebem exatamente aquilo que ofertam” (p.281). Até o Concílio Vaticano II (1962-1965), a Igreja Católica estigmatizou as religiões afro-brasileiras. O diálogo proposto pelo Concilio é ainda assimétrico, “a Igreja Católica permanece como ‘única via de salvação’”(p.282). No âmbito católico, A renovação Carismática tem um olhar demonizador sobre as religiões afro-brasileiras.

A relação com o espiritismo é marcada por distanciamentos e proximidades. Na década de 1940, as religiões afro-brasileiras eram vistas como inferiores, necessitando de evolução. O espiritismo ao se legitimar distanciou-se das religiões afro-brasileiras vistas com charlatanismo. Alguns centros espiritas abrem espaços para médiuns incorporarem caboclos e preto-velhos. Entre os segmentos evangélicos vale destacar a IURD com sua religiofagia ou fagocitose religiosa com relação a símbolos, objetos e práticas das religiões afro-brasileiras.

As “religiões ayahuasqueiras” tem uma significativa presença de elementos das tradições religiosas afro-brasileiras, tanto no Santo Daime, quanto na Barquinha, como na União Vegetal. São religiões semelhantes, mas distintas, a presença das tradições religiosas afro-brasileiras será diferenciada. As autoras relembram, também, as muitas iniciativas de diálogo transreligioso, macroreligioso promovidos por setores progressistas da Igreja Católica e pelo Protestantismo histórico.

Olhando o futuro

“No futuro, para se pensar em uma cultura de paz que respeite as religiões afro-brasileiras em nosso país, é preciso que nossa sociedade marcada pela colonialidade de poder (Quijano, 2010) supere plenamente ‘a consciência escravista”” (Soares, Santos) ( p.291).

Na base da ancestralidade africana e presente nas religiões afro-brasileiras está a matripotência, responsável pela resistência e pelas transformações. As umbandas estão aí cada vez mais diversas, com múltiplas conexões e hibridismos. A sua proximidade com o pluriverso “viking” comprova sua capacidade de se pluralizar, de se reelaborar em diversos contextos.

No entanto, faz-se necessário efetivar uma educação antirracista, que quebre a resistência às Lei 10.639 e Lei 11.645. Faz-se necessário ter presente a vitalidade das tradições religiosas afro-brasileiras, pois, sua cosmopercepção pode contribuir com a epistemologia decolonial, ao defender a diversidade de identidade. “Essa perspectiva, diversocentrada, é de fundamental importância para as gerações presentes e futuras” (p.296).

As tradições religiosas afro-brasileiras oferecem ainda, uma contribuição para a promoção da pluralidade religiosa e a filosofia do ubuntu pode trazer uma nova subjetividade para nossa sociedade. A filosofia do ubuntu está presente na vivência do candomblé e em especial na sua relação com a natureza. “ A partir da biocentralidade, a conectividade que as religiões afro-brasileiras têm com a natureza nos ensina o cuidado com o meio ambiente” (p.298). O cenário futuro é promissor, mas de luta e enfrentamento.

Pontuações finais

A leitura de Religiões-afro-brasileiras é um mergulho nas entranhas religiosas, especialmente, do candomblé ketu e da umbanda, sem perder de vista outras expressões religiosas. O livro é fruto de uma ampla e cuidadosa pesquisa bibliográfica e de campo realizada por suas autoras. Elas cruzam com habilidade e competência ambas as linhas de pesquisa ao analisar as relações dessas religiões com a sociedade brasileira.

Os futuros leitores e leitoras vão sendo introduzidos nas tradições afro-brasileiras, como do candomblé e da umbanda, a gota a gota, despertando neles (as) o desejo de saber mais. A apresentação minuciosa e sensível da religiosidade afro-brasileira questiona sistematicamente o contexto racista e intolerante, de longa duração presente na sociedade brasileira. Ao longo do percurso, o perfil critico sempre necessário e atual, se faz presente.

As desafiadoras questões e desafios vividos pelas religiões afro-brasileiras, como sincretismo, antissincretismo, africanização, reafricanização e outros tantos são pontuados com base tanto na bibliografia especializada, como nos dados obtidos na pesquisa de campo. O texto combina bem a reexistência criativa das religiões afro-brasileiras para sobreviverem e a diuturna contribuição dada pelos terreiros à sociedade brasileira.

A dimensão temporal presente nas análises convida os futuros leitores e leitoras a olharem o passado, o presente e futuro das religiões afro-brasileiras. “A matripotência que está na base da ancestralidade africana e presente nas religiões africanas” (p.290), se faz presente no “trabalho do tempo”, que deu forças para uma reeexistência criativa no passado, ajudando no presente a superar os preconceitos, que não são poucos, e a angariar novos adeptos e no futuro a partir da biocentralidade, da conectividade com a natureza de que é portadora contribuirá para retardar a crise climática que nos ameaça a todos, como já vem fazendo na atualidade.

Frente às constantes mudanças na forma de compartilhar informações, as religiões afro-brasileiras viram no ambiente virtual uma forma de ampliar suas estruturas de comunicação com os devotos. Temos, hoje, a presença do tradicional/oralidade e do novo na transmissão de suas tradições religiosas. O número de afronautas cresce a cada ano.

A riqueza, complexidade e profundidade da filosofia ubuntu tão presente nas religiões afro-brasileiras pode ser de grande valia para nossa sociedade. O ubuntu “é uma práxis que envolve o entendimento do Ser no mundo, de sua existência para além da existência física, envolvendo o Ser vivente, o Ser não nascido e o Ser que já partiu da existência física” (p.297).

Esta breve apresentação de alguns tópicos do livro, nem de longe dá conta da riqueza de informações, reflexões contidas nele ao ser escrito a partir de dentro das religiões afro-brasileiras. O livro não é um ponto de chegada, mas um convite-partida dirigido aos leitores e leitoras a continuarem a ampliar seus conhecimentos. Ler Religiões afro-brasileiras é conhecer um pouco mais o Brasil e sua pluralidade religiosa. Reitero o convite a todos e todas a realizarem essa travessia cheia de surpresas ou como afirmam as autoras “essa grande gira”. Axé com as bênçãos de Exu e Oxalá.

Bibliografia

CORRÊA, Norton Figueiredo. Origens do batuque. In: SANTOS, Irene.(ORG.). Negro em preto e branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre. Porto Alegre; Do autor, 2005.

SAMPAIO, Dilaine Soares; Sônia Regina Corrêa; LAGES, CAMPOS, Zuleica Dantas Pereira. Religiões afro-Brasileiras. Petrópolis: Vozes, 2025. ISBN978-85-326-7027-4, pp.333.


PARÉS, Luís Nicolau. Apropriações e transformações crioulas da pajelança cabocla no Maranhão. In: CARVALHO, Maria do /Sosário de. et al.(org.). Negros no mundo dos índios: imagens, reflexos e alteridades. Natal: EDUFRN,2011, p.120-129.


QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula ( org.) . Epistemologia do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p.84-130.


SOARES, Maria Raimundo Penha, SANTOS, Thamires Costa Meirelles dos. Consciência escravista e memória ancestral: a dialética que comporta a América ladina e se efetiva em práticas de resistência de mulheres afro- brasileiras. In: IRINEU. Bruna Andrade et al.(org.). Diversidade sexual, étnico-racial e de gênero: saberes plurais e resistências-volume1 Campina Grande: Realiza Editora,2021, pp868 s











1 Dilaine Soares SAMPAIO; Sônia Regina Corrêa LAGES; Zuleica Dantas Pereira CAMPOS. Religiões afro-Brasieias..Petrópolis :Vozes,2025. ISBN978-85-326-7027-4 pp.333.

2 Passamos a indicar apenas a página do livro.

 
 
 

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